"O caráter é o nosso destino." (Heráclito, 500 a.C.)
Que grande e difícil tarefa é formar um médico! Não porque não tenhamos o que ensinar. Pelo contrário, nunca dispusemos de tanta informação, mérito também dos nossos antecessores que abriram trilhas onde não havia nada, essas que o desavisado percorre agora com um ar de soberba de quem, por falta de noção, se comporta como se a chegada dele ao umbral da medicina fosse o marco zero dessa profissão ao mesmo tempo sofrida e maravilhosa.
Ensinar história da medicina aos mais jovens tem a função de alertar que a fortaleza de ciência que nos protege, sem todavia eliminar o medo atávico de errar, foi erigida _ uma novidade de cada vez _ com trabalho, incerteza, suor e culpa de muitas cabeças que desde sempre só queriam acertar.
Também por isso, quando vejo os médicos da modernidade dando aulas referendadas por protocolos de medicina baseada em evidências, não consigo deixar de pensar no quanto de esforço humano foi dispendido na construção dessas evidências, numa época em que cérebro, intuição, bom senso e zelo eram as únicas armas disponíveis.
Gostar ou não de gente é um atributo do caráter das pessoas, e isso não se consegue ensinar.
Claro que tenho consciência do peso dessa observação e do risco que corro de ser transferido para a galeria dos jurássicos, aqueles cujas fotos são expostas na parede de museus médicos, a serem visitados por velhos saudosistas e jovens pesquisadores em preparação de alguma tese de doutorado. Então, preciso confessar que, tendo ultrapassado a fase da vida em que me esforçava em ser popular, estou só e genuinamente preocupado em oferecer aos jovens em formação a chance de errarem menos e, por consequência, de serem melhores do que nós. Ou pelo menos de não repetirem, por falta de aviso, os equívocos grosseiros que a nossa geração cometeu.
Por outro lado, estou convencido de que treinar um cirurgião é ainda mais difícil, porque o tratamento que ele oferece envolve uma agressão física como preço do resgate da vida que o paciente considerava normal. Se alguém ainda não se deu conta da importância disso, significa que, além de jamais ter sido operado (sorte dele), nunca se aproximou, de fato, dos sentimentos de quem está assombrado com a ideia da morte, rondando sempre por perto, enquanto uma equipe de estranhos mascarados se prepara para fatiá-lo com lâminas afiadas sob o comando de um desconhecido que pode estar de mau humor. Oferecer a melhor técnica possível, sem nenhuma preocupação com empatia e solidariedade, representa apenas uma das metades do melhor que podemos ser.
Na formação do cirurgião que pretenda ser completo, se exige muito mais do que isso. E três requisitos são indispensáveis para que se alcance a completude, que enobrece quem alcança e fascina quem dela se aproxima:
1) Que adore operar, porque só operando muito serão melhores técnicos, pois entre pessoas normais, as que fazem mais acabam fazendo melhor.
2) Que se mantenha atualizado e disfarce a irritação ao ouvir uma novidade que ele devia ter descoberto antes.
3) E, muito importante, que goste de gente, e sinta prazer de ajudar.
Faz enorme diferença perceber que, enquanto as duas primeiras exigências se pode satisfazer por qualificação e treinamento, gostar ou não de gente é um atributo do caráter das pessoas, e isso não se consegue ensinar.
Se um jovem tiver dúvida sobre a importância do último quesito, uma sugestão: pergunte a um clínico experiente como ele seleciona o cirurgião para quem encaminhar os seus pacientes. Como, invariavelmente entre cirurgiões tecnicamente qualificados, ele optará pelo mais carinhoso e empático, caberá ao principiante construir a sua imagem profissional de acordo com sua intenção de atrair mais ou menos pacientes. E, na contramão, não adiantará se queixar de azar profissional, essa herança amarga que é entregue como retribuição a essa triste mistura de impessoalidade e desatenção.
A proliferação de técnicos qualificados tornou o mercado mais competitivo, o que exige que o cirurgião seja mais do que um técnico que corta e costura, porque a sala de cirurgia é muito mais do que um ateliê; porque, ao contrário daquele, no nosso o manequim tem sentimentos, família, medo e esperança. Ou seja, é um de nós, que adoeceu.