Claro que viver em sociedade é bom, desafiador e estimulante, mas o lado negativo é que a vida, na grande urbe, corrompe a pureza. E não há nada mais comovente do que um velhinho carregando inocência de criança.
Conheci o Juventino, na meia idade, nos anos 1990, quando operou um câncer de pulmão e, depois de cinco anos de consultas periódicas, desapareceu. A sua história de vida é clichê desta grande legião de colonos imigrantes que vive no interior dos municípios do interior: ele nasceu, cresceu, casou e teve cinco filhos, com a dimensão de mundo moldada pelos limites sociais da roça.
A sua prole, certamente sufocada pela falta de perspectivas, debandou. Três de seus filhos ele não via há mais de 10 anos. Repartiu com a esposa a solidão de filhos dispersos, mas ela, depois de 55 anos de casamento, morreu de um tumor de mama.
Demorei a reconhecê-lo, tão velho me pareceu. Estava sete centímetros encurvado e tinha a cara sulcada pelo sol.
Foi então resgatado pelo filho caçula (“Este guri sempre foi o mais apegado”) para viver com ele em Porto Alegre. Tocante vê-lo contar a história do filho que saiu da grota aos 16 anos e que agora tinha até uma casinha dele “uma dessas casas empilhadas da cidade grande” e que lhe colocava no olho aquele brilho inconfundível de orgulho paterno.
Nosso reencontro ocorreu depois de uns 25 anos, quando, já morador da Capital, agendou uma consulta. Tinha sido trazido pelo tal filho que o deixou no consultório com a promessa de apanhá-lo mais tarde. Demorei a reconhecê-lo, tão velho me pareceu. Tudo por culpa do encurvamento que lhe roubou sete centímetros e a cara sulcada, carregando muitos dias de sol na lavoura, que nem a máscara escondia completamente.
Quando quis saber no que podia lhe ajudar, ele logo avisou que desta vez não havia nada para operar, mas tinha um problema muito sério que precisava se aconselhar comigo. Desde que mudara pra cidade grande, tinha muito pouco o que fazer. Acordava cedo, arrumava as camas, limpava tudo, e no final da tarde preparava uma jantinha que “aprendera com a patroa velha,” esperando o filho chegar.
E então a parte que ele mais gostava: as histórias que o filho lhe contava durante o jantar.
— Doutor, era como se eu tivesse andado com ele o dia inteiro, um colosso!
Acontece que, um dia desses, ele resolveu encarar a cidade grande e se deu muito mal.
— Eu só queria ter alguma coisa pra contar na hora do jantar, e acabei dando um baita susto no menino, que até a polícia chamou para me encontrar! Preciso que o senhor me ajude a convencê-lo de que não foi culpa minha. O pior é que eu não posso contar que já saí outras vezes, e que nunca tive problema porque eu sempre andava em tinha reta, prá facilitar a volta!
Perguntei o que aconteceu dessa vez, que não deu certo.
— Ah, doutor, é que eu resolvi dar uma dobradinha na esquina e marquei o carrinho do pipoqueiro para saber onde desdobrar, na volta. Foi meu erro, tinha que ter marcado uma coisa parada, e quando voltei, acho que o filho da mãe tinha ido embora! E então fui andando, andando e quando as casas foram se achicando, bateu um desespero porque me dei conta que estava perdido.
Resolvi brincar com ele:
— E o senhor o tempo todo de máscara, seu Juventino?
— Mas bah, doutor, morro de medo do tal corona, mas o senhor tem que me ajudar é a acalmar o piá que mal fala comigo há uma semana!
— Olha, Juventino, se o teu filho souber o quanto gostas de ouvir as histórias dele e que estavas só tentando retribuir, com medo que ele cansasse de falar sozinho, o coração dele vai derreter, porque o meu já derreteu!
Pela primeira vez sorrindo, ele avisou:
— Se não funcionar, eu volto aqui!
Dez dias depois, ainda não tinha voltado. É certo que deu certo.