A velhice traz umas atribuições curiosas porque impõe urgência em coisas que foram negligenciadas pela vida toda. Depois de uma certa idade, prestação de contas e reparações ocupam os espaços vazios da nossa vida com tal frequência que, lá pelas tantas, nenhuma dúvida: a velhice é a pátria dos espaços vazios. Os problemas de convívio começam quando as famílias não conseguem disfarçar que o vagão ocupado pelo vôzinho é um atravanco na locomotiva dos filhos.
Abraham era um alfaiate judeu, de 88 anos, que vivia na Argentina desde os 18 e foi surpreendido com a revelação de que suas quatro filhas amadas tinham vendido a casa onde vivera desde sempre e lhe destinado uma hospedagem, anunciada como digna, num lar de velhos desconhecidos. Em represália à iniciativa da prole que decidira o que fazer sem consultá-lo, foi a uma agência de turismo e, com suas economias, comprou um pacote de viagem para a Polônia, com intenção de reencontrar um amigo que lhe salvara a vida no final da guerra, ajudando-o a fugir do inferno nazista. A promessa de voltar um dia para prestar contas ao amigo de como vivera a vida que lhe salvara enfrentaria um grande problema: já haviam se passado 70 anos e nenhum contato ocorrera desde então.
O roteiro pela Europa deveria ser cumprido por via ferroviária e, em Paris, foi socorrido por uma mulher jovem que, ao vê-lo ridicularizado tentando se comunicar sem falar francês, resolveu ajudá-lo e descobriu, então, que ele não aceitaria que o roteiro passasse pela Alemanha, um país em que ele jurara nunca mais pôr os pés. E justificou contando-lhe a experiência horrorosa de perder um irmão menor que teria escapado da câmara de gás se tivesse mais de 11 anos, mas lhe faltava um mês para alcançar aquela idade que o habilitaria ao trabalho escravo. A derrubada dos preconceitos começou quando a jovem, solidária e generosa, confessou que ela própria era alemã e argumentou que o povo da Alemanha moderna tem consciência daqueles absurdos e ainda se sente constrangido pelo passado. De qualquer modo, na estação alemã, onde faria o traslado para Varsóvia, ela teve que improvisar um tapete com roupas estendidas por uns 10 metros até o banco onde ele esperaria o próximo trem. A decisão de não tocar o solo alemão foi respeitada.
No caminho para a Polônia, ele teve uma série de alucinações no trem e acabou caindo desacordado. Acordou num hospital polonês, aos cuidados de uma linda médica com quem se comunicou em iídiche e ouviu dela a triste informação de que a sua perna direita, com péssima circulação, devia ser amputada. Ele implorou a prorrogação da cirurgia por mais uns dois dias, porque precisava daquela perna para encontrar o tal amigo. Comovida com a história, a médica resolveu ajudá-lo e peregrinaram pela ruas do bairro onde vivera em Varsóvia. Numa ansiedade previsível, ele confessa: “Tenho medo que ele não esteja, tenho medo que esteja, tenho medo de tudo.”
Chegando ao antigo endereço, ele contemplou a fachada de um atelier, até que, de repente, ocupou a janela um velho de cabeça muito branca e eles não precisaram mais do que poucos segundos para se descobrirem. E, então, o amigo, que tinha melhores pernas, correu para abraçá-lo. Soluçando de emoção, ele entregou ao amigo um traje que recebera dele como um presente antes da viagem para a Argentina, havia 70 anos. Quando o amigo perguntou se era o traje azul, ele balançou a cabeça e chorou, e choramos todos, outra vez. O Último Traje é um filme argentino, escrito e dirigido por Pablo Solarz. E confirma que, com uma linda história, três ou quatro bons atores e uma direção sensível, é possível criar uma obra memorável, sem os custos astronômicos das superproduções.
Em tempo: esse filme nunca concorrerá ao Oscar de efeitos especiais. Mas o efeito que provoca na gente, esse, sim, é especial.