Tenho os meus fantasmas e é com eles que escrevo. Estão todos lá. Prontos para brotar em minha mente quando ficcionalizo a vida: traumas, amores perdidos, decepções, realizações, ressentimentos, angústias, alegrias, as doenças e as curas, as coisas que li e estudei, e tudo mais que envolve esse tecido que nos constitui.
Dias atrás, recebi cumprimentos pelo Dia Nacional do Escritor. Confesso que ainda hoje me causa um certo estranhamento, porque ser escritor não estava nos meus planos. Nem nos planos de minha mãe. A princípio, o plano era ter onde morar, não se envolver com drogas, nem com a polícia, nem com as más influências e, claro, manter-se vivo. O mais que pudesse. Sobreviver era a nossa prioridade. Nesse tempo, os livros não tinham chance com a gente. A vida era mais urgente que a ficção. A literatura muitas vezes parecia incompatível com a minha vida.
No entanto, hoje entendo com mais clareza o motivo de ter me tornado escritor: porque sempre me senti deslocado nos empregos que tive. Um sentimento de inadequação que me impedia de ficar feliz com o trabalho que eu exercia. E foram tantos. Minha carteira de trabalho é um mosaico de carimbos: vendedor de feira livre, empacotador de supermercado, atendente de lanchonete, chapista, pizzaiolo, atendente de telemarketing, office boy, auxiliar administrativo e tantos outros. Eu tinha uma incapacidade de adaptação. Era uma recusa, ainda que inconsciente, ao que me era ofertado como ocupação profissional.
Quando descobri que gostava de dar aulas, agarrei-me a essa sensação de bem-estar. Era a primeira vez que não me sentia deslocado numa profissão. Na época, eu chegara aos 30 anos. E sempre tenho a impressão que chegar aos 30, para algumas pessoas, é também um momento de grandes mudanças pessoais, porque a essa altura da vida você já passou por certas coisas, já sofreu, já conheceu o inferno, já se casou ou pelo menos teve algum relacionamento mais complicado. E foi aos 30 anos que a escrita entrou na minha vida, se instalou e de lá nunca mais saiu.
Na verdade, a escrita sempre esteve lá comigo. A vontade de fabulação sempre me acompanhou desde que me entendo por gente, mas eu não sabia que podia fazer disso uma profissão. Ninguém nunca me contou este segredo. Foi aos 30 que me dei conta do quanto escrever literatura era grave e necessário para mim.
E como diria o romancista argentino Ernesto Sabato: “O escritor é ele e seus fantasmas. Não escrevemos apenas pelo amor à literatura, mas por uma espécie de fanatismo à ficção”.