Por muito tempo, acreditei que a literatura não poderia nos salvar de nada. Recusava-me à ideia de que a ficção pudesse ter essa característica salvacionista ou que ela pudesse ser confundida com textos rasos de autoajuda. Acreditava que a literatura operava num outro tempo mais complexo e subjetivo e que, portanto, não se apresentava como uma bengala, um apoio ou um abrigo.
Penso que a salvação pela literatura nada tem a ver com um tipo de antídoto. Tem a ver com salvação relacionada à tomada de consciência. Acredito que o leitor experiente é aquele que, no fundo, lê porque quer trazer algo da literatura para sua própria vida. Neste sentido, posso dizer que algumas histórias me salvaram durante minha jornada como pessoa. Lembro quando li, pela primeira vez, um livro inteiro. Eu tinha 24 anos. O livro era Feliz Ano Novo, do Rubem Fonseca. Aquela obra me salvou porque me sequestrou para a literatura. Nunca mais fui o mesmo, pois aquela linguagem fluente, erótica, violenta, reflexiva e cheia de ironia me fez entender que a literatura era muito mais do que eu imaginava.
Pouco depois, caiu-me em mãos A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Clarice foi mais um acontecimento na minha vida. Sua literatura me jogou no abismo. Sem abrigo e sem proteção. Abandonei-me em sua escrita. Clarice me salvou de ser condenado a tatear apenas a superfície das coisas.
Aos 25 anos, li Machado de Assis. Mesmo que houvesse alguma tentativa dos professores de literatura da minha escola de me apresentarem a obra machadiana, foi só na vida adulta que Machado fez sentido e se transformou em mais um acontecimento. Creio que minha caminhada como leitor possa ser mensurada pelos impactos que a literatura me causou. Pelas mudanças internas que me provocou. Depois veio a Carolina Maria de Jesus e suas questões existenciais, reflexões sobre a vida e fome pelos livros em meio à precariedade. Depois de Carolina, minha visão sobre literatura mudou para sempre.
E vieram também Toni Morrison, Guimarães Rosa, Cervantes, James Baldwin, Shakespeare, Mia Couto, Proust, Conceição Evaristo, Dostoiévski, Paul Valéry, Virginia Woolf e tantos outros que me salvaram e continuam me salvando de uma vida triste e superficial. Foi a literatura que me permitiu construir instrumentos e mecanismos internos capazes de discordar da vida. É a literatura que me resgata e me traz de volta ao mundo. Não tenho dúvidas de que será pelo sonho e pela ficção que nos salvaremos todos.