Anos atrás, quando era estagiário em um escritório e tinha de resolver os problemas que precisam ir para rua (banco, correios, fóruns, entregar contratos em empresas), eu começava a perceber a relação entre caminhar e pensar. Não importava se havia sol, frio ou chuva, parecia-me que estar fora do escritório era sempre melhor. No entanto, aos vinte e poucos anos, você não vê a cidade por onde anda. Ou melhor, você não sabe ver. A arte de ver a cidade enquanto se caminha é uma conquista pelo tempo. O modo como você anda define o modo como você é na vida.
Lembro que no auge da pandemia, quando estávamos quase em lockdown, quando sair nos parecia tão aterrorizador, quando não tínhamos perspectiva nenhuma, quando não tínhamos vacina, não tínhamos ideia do que vinha pela frente, o que mantinha minha sanidade era dar uma volta na quadra duas vezes por semana. Naqueles breves 20 minutos, eu me libertava da ideia de morte que nos rondava. Caminhar me devolvia a dignidade. Eu saía partido de casa, no entanto, quando regressava, eu estava inteiro e regenerado de humanidade.
Hoje, quando caminho, às vezes, estou tão dentro de mim, que torço para que nada interrompa aquele momento. Torço para não encontrar ninguém conhecido. Que ninguém me peça informação. A solidão da caminhada é uma condição para quem cria. Transformo calçadas, ruas e avenidas em meu espaço de trabalho. Converso mentalmente com minhas personagens e invento um mundo para mim.
Em minha caminhada moderna, com fones nos ouvidos, uma seleção de músicas instrumentais no Spotify, sem um rumo pré-definido, finjo perder-me e me pergunto: quantos problemas não foram resolvidos entre as ruas Felipe Camarão e a João Telles? Quantos insights tive ao caminhar na Rua dos Andradas, dissolvido na multidão, quantas epifanias, quantas ideias de romances e de textos brotaram dessa simbiose entre as ruas e aquele que caminha? Para enfim chegar à única conclusão possível, a um único pensamento honesto e verdadeiro de quem anda e observa: a cidade sou eu.