Virou notícia nacional a prisão do motoboy Everton Henrique Goandete da Silva, 40 anos, feita por PMs no sábado (17), em Porto Alegre. Ele foi atingido superficialmente por um pontaço de faca desferido por um morador do bairro Rio Branco, Sérgio Camargo Kupstaitis, 71 anos, durante uma discussão após ele reclamar da presença constante de motociclistas na calçada em frente ao prédio onde ele reside. Os policiais militares que atenderam a ocorrência prenderam primeiro o motoboy agredido e só depois o agressor, o que causou revolta em pessoas que assistiam e filmavam a cena.
Detalhe: o motoboy é negro e o homem que o atingiu com uma faca, branco. A partir daí, ganhou corpo nas redes sociais a tese de que a postura dos PMs foi racista. É uma discussão necessária e também será investigada pela Polícia Civil. Mas acompanhamos o caso de perto e o que já está claro, para quem assiste às filmagens do episódio e até para quem ouviu testemunhas e a vítima (como eu fiz), é que a abordagem policial envolve algum despreparo.
Anotamos alguns pontos preocupantes:
Reação desproporcional dos policiais
Ao ver a chegada dos policiais, o motoboy passou a clamar para que eles prendessem o agressor. Ele estava nervoso, o que é compreensível — tinha levado um pequeno corte de faca no pescoço, que só não o matou porque foi superficial. Um dos PMs manda ele se afastar do agressor, o motoqueiro hesita, insiste que prendam seu oponente, e aí o brigadiano agarra o motociclista, o imobiliza e, com ajuda de colegas, o algema e o coloca na parte de trás da viatura. Será que teria de haver prisão ou uma advertência enérgica bastaria? Ou mesmo separar os dois oponentes, sem ter de usar algemas? Me parece (e a outros que assistem às cenas) abuso de autoridade. A prisão deve ser o último recurso e não o primeiro, numa abordagem. Enquanto o motoboy era preso, o homem da faca, Kupstaitis, foi fotografado sorridente, em conversa com os policiais.
Tratamento diferenciado aos envolvidos
O motoboy Everton foi algemado com as mãos para trás e empurrado para a traseira da caminhonete policial (na parte conhecida como "cachorreira" e que tem grades para impedir a fuga). Já o agressor, Kupstaitis, teve tempo de subir no seu apartamento, largar a faca e só então os PMs foram atrás dele e o conduziram preso. Só que ele foi no banco de trás da viatura, na parte com estofamento, e não acondicionado sobre o metal da parte traseira, como o motoqueiro que ele feriu. Por que essa diferenciação? Os policiais alegaram que o motociclista estava "alterado", mas é flagrante a diferença de tratamento empregada aos dois envolvidos na quase-tragédia.
Flagrante prejudicado
Policiais que agiram no caso poderiam encarar de várias formas o episódio. Como tentativa de homicídio (é o que o motoboy diz) ou como uma briga. Kuptaitis alega ter levado um coice do motoboy. A diferença é que um dos envolvidos, o mais velho, portava uma arma, a faca. O motociclista que ele atingiu, não. Caso decidissem comprovar a tentativa de assasinato, os PMs teriam dificuldade, já que o dono da faca, ao subir para pegar uma camisa e documentos antes de ir formalmente preso, dispensou a arma branca em casa. Assim, ela não foi apreendida, com base na tese de que o domicílio do cidadão é inviolável pela polícia. A verdade é que nem sempre é preciso ordem judicial para ingressar na residência de um autor de crime. Caso ele ofereça perigo, esteja escondendo armas ou drogas ou tentando escapar de um flagrante, policiais podem sim prendê-lo. Como, aliás, fizeram os PMs, só que sem entrar na casa e pegar a faca. O que abre brechas para a queixa de tratamento desigual feita pelo motoboy vitimado.
Claro que tópicos como esses serão analisados apropriadamente na sindicância aberta pela Corregedoria da Brigada Militar (BM).
E o racismo?
Mais delicado para comprovar, já que alguns dos PMs envolvidos podem se declarar negros, o que ajudaria a minimizar essa hipótese. Muita gente que assistiu às cenas chama o ocorrido de "racismo estrutural", quando o envolvido reproduz comportamentos racistas históricos, mesmo que inconscientemente. Pode ser. A ver as cenas dos próximos capítulos desse episódio lamentável.