Não será agora que o espírito do médico Marco Antônio Becker irá descansar. Foram absolvidos pelo Tribunal do Júri organizado na 11ª Vara Federal de Porto Alegre os quatro acusados de envolvimento no assassinato dele, ocorrido em dezembro de 2008. Com isso, a investigação sobre o caso - um dos mais rumorosos da crônica criminal gaúcha - volta à estaca zero. A menos que o Ministério Público Federal (MPF) consiga reverter o resultado, com o recurso que já impetrou contra a decisão, alegando nulidades durante o julgamento em plenário.
Becker foi morto com quatro tiros por dois motociclistas, quando entrava em seu carro. Após um ano de investigação, a Polícia Civil concluiu que o crime tinha sido encomendado por outro médico, o ex-andrologista Bayard Olle Fischer dos Santos, que teve o diploma cassado durante a gestão de Becker como presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers, do qual era vice-presidente quando foi morto). Ele virou réu, assim como um assessor dele na clínica de andrologia, Moisés Gugel. Os dois teriam encomendado o assassinato a um chefe do tráfico de drogas, Juraci Oliveira da Silva (o Jura, que era cliente de Bayard e tem várias condenações como líder criminoso no bairro Campo da Tuca, na Capital). Esse teria terceirizado a missão para um dos seus cunhados, Michael Noroaldo Garcia Câmara, o Tôxa, que seria um dos que tripulava a moto usada pelos assassinos do médico.
Os principais indícios contra o quarteto eram a notória inimizade entre Becker e Bayard, o fato de Jura ser cliente de Bayard, o fato do assessor do médico ter trocado diversas mensagens de celular com o traficante nos dias anteriores ao crime e, sobretudo, o fato de Tôxa ter uma moto similar com a que foi utilizada pelos assassinos. Os quatro chegaram a ficar presos mais de ano, durante o processo. Hoje, só Jura está atrás das grades, cumprindo pena por outros crimes, mas absolvido na mais rumorosa ação penal que respondeu, o assassinato do ex-presidente do Cremers.
A absolvição não nos surpreendeu e apresentamos aqui alguns fatores que podem ter contribuído para que os réus fossem inocentados:
Demora para julgar diminuiu a comoção - passaram-se quase 15 anos desde a quente noite de 4 de dezembro de 2008, quando Becker foi assassinado. Foi uma comoção na época, mas muito tempo transcorreu desde então e o caso virou paisagem. Contribuiu para a demora o fato de o júri ter ido da esfera estadual para a federal, a pedido dos advogados (já que Becker era conselheiro federal de Medicina e pode ter sido morto em decorrência dessa função). Os ânimos na opinião pública serenaram nessa década e meia. E os próprios policiais esqueceram alguns detalhes da investigação (sobretudo a referente a outras hipóteses para o assassinato). O que é compreensível, mas foi explorado pela defesa dos réus.
Um homem com muitos inimigos - Becker era um homem de vida pessoal atribulada. Era cobrado de forma frequente por dívidas que contraiu com jogatina, paixão que o levou a contrair débitos até no Uruguai. Ele também tinha inúmeros desacertos na vida amorosa, com rotina de busca de parceiros, como ficou claro na investigação e no júri. São fatores que também poderiam levar alguém a arquitetar sua morte, além da sua sabida inimizade com o réu Bayard.
Investigação focada numa hipótese - os policiais encarregados de elucidar o assassinato investigaram várias hipóteses, desde possível vingança pelas dívidas de jogo contraídas por Becker até desacertos amorosos. Mas a verdade é que desde o primeiro momento a investigação focou na desavença do médico com Bayard Fischer dos Santos. Isso porque era o mais visível dos inimigos do vice-presidente do Cremers e tinha relações com um traficante, cliente seu. A probabilidade de um conluio entre os dois para o assassinato, somada à intensa troca de mensagens entre eles, fez com que as outras vertentes perdessem força. E isso foi muito explorado pela defesa dos réus.
Outros suspeitos - os advogados dos réus chegaram a levar testemunhas que apontaram outras pessoas como supostos autores do assassinato. Um homem que esteve preso por outro crime (e acabou absolvido) depôs, dizendo ter ouvido de dois PMs que também estavam no presídio que eles tinham matado Becker. Um deles teria inclusive chorado ao comentar isso. Outras testemunhas revelaram que Becker tinha desavença com policiais que faziam segurança nas casas noturnas que ele frequentava, inclusive troca de ameaças. Tudo isso foi apresentado aos jurados, para mostrar que não só os réus poderiam ter cometido o crime, mas várias outras pessoas.
Dúvida é soberana - os defensores dos acusados conseguiram semear várias dúvidas na mente dos jurados. Sobre o teor das mensagens trocadas entre o assessor de Bayard e o traficante Jura, não reveladas (eles alegam que se referiam apenas a questões de saúde). Sobre a existência de outros suspeitos capazes de cometer o crime. Sobre o risco de colocar inocentes por décadas na cadeia. Tudo isso pesou. Como o leitor sabe, a regra número um do júri é "in dubio pro reu" (em caso de dúvida, se beneficie o réu). Foi o que aconteceu.
O caso está encerrado? Não. A acusação vai recorrer. Os assassinos de Becker continuam soltos - e talvez nunca sejam punidos, até porque o crime pode prescrever. Essa é a realidade, gostemos ou não. A propósito: ao final do júri houve uma queima de fogos no Campo da Tuca, na zona leste da Capital.