O inferno na terra atende pelo nome de presídio, todos nós sabemos. A questão é que 99% das obras que tratam do tema abordam o assunto sob o ponto de vista masculino. E o que dizer das mulheres encarceradas?
O desafio de fazer os retratos do cárcere, desde a perspectiva feminina, foi encarado por uma dupla mais do que versada em universo prisional, os jornalistas Renato Dornelles e Tatiana Sager. Ele, mais voltado para roteiro e texto. Ela, mais para direção e gravações. O resultado é o filme Olha pra Elas, da Panda Produções. Imperdível, porque totalmente estruturado em depoimentos prestados de cara limpa pelas presas. E comovente, como deve ser uma obra de arte. Elas contam como funciona o namoro por cartas, muitas vezes intermediadas por um pastor ou freira. Como é a relação com filhos - quando pequenos onipresentes, puxando cadeia junto com elas, por falta de terem onde ficar. Noutras ocasiões, ausentes, pela ruptura na relação ou porque, adultos, têm de cuidar de suas vidas.
Renatinho (como Dornelles é conhecido) e Tati são veteranos no retrato do submundo. São autores de "Central" (documentário sobre a vida no principal presídio gaúcho, baseado no livro Falange Gaúcha, de Renatinho), e da continuação desse livro, Paz na Prisão, Guerra nas Ruas, sobre o conflito de facções que ensanguentou Porto Alegre na década passada.
Em Central, Renatinho e Tati tiveram a grande sacada de colocar filmadora na mão dos presos. Em Olha pra Elas optaram por outra técnica não convencional: o filme não tem narrador. As histórias são ancoradas na voz das presas, dos psicólogos, dos funcionários dos presídios, dos servidores do Judiciário e do Ministério Público. Essa gente é o fio condutor.
O espectador fica sabendo de uma verdade dolorida: algumas das presidiárias são filhas e netas de presidiários, o que explica muito da sua trajetória. A maioria é chefe de família, porque seus companheiros também estão presos. Ou são mães solo.
- O aprisionamento da mulher é o aprisionamento da família. Elas tem cinco ou seis filhos, com diversos parceiros. Aí, quando ela é retirada pelo Estado da sua família, quem cuida das crianças? Tem as creches, mas não é a mesma coisa - define a juíza Patrícia Fraga Martins, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.
Naiane, uma das entrevistadas, descreve sua rotina com uma sinceridade chocante. Admite que sua vida sempre foi voltada ao crime. Desde os 15 anos de idade entra e sai do cárcere. Primeiro, como menor de idade. Aos 18 foi parar no presídio feminino Madre Pelletier. Ela tem 32 entradas no sistema penitenciário.
- Tudo por causa da dependência do crack. Recaídas e recaídas, uma mais ruim que a outra. Fiquei a última gravidez toda em situação de rua, fumando droga, quase ganhei a neném na rua. Ela ganhou alta e quem ficou fui eu. Eu sou assim: surge um problema, pedra. Não sente nada, nem dor, nem fome - resume Naiane.
Adelaide, que tem seis filhos, afirma que traficava porque tinha de dar comida às crianças. Uma delas, com Síndrome de Down. Cumpre 30 anos por dois crimes: homicídio (que nega) e tráfico (que assume). Sobre a vida na prisão, é sincera.
- Tão achando que vão educar a gente? Daqui a gente sai pior - descreve.
As presas narram casos de abuso contra elas e contra crianças. Pancadarias. Famílias destroçadas e desunidas. A matéria-prima da desagregação que perpetua o crime.
Cátia, 38 anos, diz que rompeu com o marido porque queria trabalhar e ele não deixava.
- Dizia que mulher que trabalha quer arrumar outro homem. Aí separei dele. Uma vizinha arrumou serviço pra mim numa reciclagem, que mantinha eu e as crianças. Ele continuou me incomodando. Fui trabalhar num bar. Me acusaram de traficar. Aí fui condenada a 10 anos por tráfico e associação para o crime. Eu não esperava, não fiz isso que os policiais me acusam.
Um dos netos pergunta se é verdade que "a vó tá no castelo". Cátia chora ao comentar.
A promotora Ivana Bataglin, ao falar das prisioneiras, nega uma crença popular: a de que o Brasil é o país da impunidade.
- Não sei de qual impunidade falam. Se pune muito nesse país. O encarceramento só aumenta. Entre as mulheres teve crescimento de 300%, principalmente em relação ao tráfico. Mas se pune os pequenos traficantes, não os patrões, os donos de helicóptero. É o encarceramento da pobreza - analisa Ivana.
Uma das entrevistadas toca numa das maiores dores das presidiárias. Questionada se recebe visitas, ela desanda a chorar.
- Não.
Pois é. Renatinho e Tati tocam numa ferida exposta do sistema penitenciário: ao contrário dos homens presos, muitas presas são abandonadas pelos parceiros. Essa situação já tinha sido muito bem retratada pela jornalista Cristiane Finger num documentário no SBT, vencedor de diversos prêmios nacionais, intitulado Mulheres que Amam Demais. Já em 2005 ela mostrava que nos presídios masculinos há filas de mulheres para fazer visita. Incluindo mães e irmãs deles. Nos femininos, várias detentas ficam sabendo que seus homens as trocaram por outras, assim que foram colocadas atrás das grades.
“Olha Pra Elas” estará em telonas de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Salvador, Palmas e Balneário Camboriú, a partir desta quinta-feira (11). Na capital gaúcha, estará no GNC Moinhos de Ventos (15h50 e 19h40), na Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mário Quintana (19h30) e no Espaço de Cinema Bourbon Country (19h20).