Na sala de leitura da Penitenciária de Canoas 1, a expectativa de mudança na conduta faz com que um preso provisório, de 26 anos, autor do crime de roubo, agarre-se a uma obra de Sigmundo Freud. Outro, viaja com o clássico Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes. Há espaço ainda para a filosofia de Platão, a política de Maquiavel. Outro detendo, de 41 anos que ainda aguarda julgamento devora as páginas do livro A Lei da Atração, o Segredo Colocado em Prática, do canadense Michael Losier. Livros de autoajuda são os seus favoritos, embora não abra mão de outros gêneros, como ficção.
Ele faz isso por ter adquirido o hábito no cárcere, mas, além do lazer, poderia ainda estar desfrutando do benefício da remição de pena pela leitura. A norma que possibilita a redução de quatro dias da condenação a cada livro lido ainda não está regulamentada no Rio Grande do Sul. No Paraná, onde já está vigorando, é observada uma redução de 60% para 20% nos casos de reincidência entre os presos que leem durante o período no cárcere.
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De acordo com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), o projeto que prevê a remição de pena pela leitura, criado pela procuradora do Estado Roberta Arabiane Siqueira, está em análise na assessoria jurídica do órgão. Embora já tenha ocorrido a regulamentação em outros 14 estados, por aqui há uma divergência entravando a aprovação: um entendimento de que matérias deste tipo, envolvendo o cumprimento de penas, só podem ser aprovadas pela União.
Mas, independentemente da remição, a leitura virou hábito entre presos da Pecan. E outros benefícios são observados tanto por presos, quanto por profissionais que atuam junto ao sistema. Condenado a nove anos por estupro, um dos mais repudiados pela sociedade, um preso de 43 anos acredita que esteja evoluindo enquanto ser humano, através dos livros.
– Quando a gente perde a liberdade, deixa de ser um ser pensante e age muito pela cabeça dos outros. Com a leitura, a gente sai desse mundo enjaulado e passa a ter outra visão. Se liberta e não se deixa mais influenciar pelos outros – filosofa o apenado, que durante um período chegou a dedicar oito horas diárias aos livros.
Psicóloga da Susepe com atuação na Pecan 1, Rita Leonardi observa as mudanças:
– Os que leem mudam para melhor até a forma de se comportar perante os demais, os servidores, enfim, a conduta muda diante dos outros – analisa.
Professora de português lotada na Escola Nelson Mandela, dentro da cadeia, Cássia Pavan concorda.
– Apesar de estarem privados de liberdade, com a leitura eles se libertam. Libertam a mente. Eles passam, através da vida das personagens, a repensar sua vida e sua conduta até aqui – diz.
A diretora da Pecan 1, Emilinha Silva Nazário, afirma que, tão logo ocorra a regulamentação, a remição de pena pela leitura passará a valer naquela prisão. O mesmo é dito por Maria Clara Oliveira de Matos, diretora da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre. A prisão, que abriga atualmente 243 presas, já teve um projeto-piloto que, de acordo com ela, foi bem sucedido.
– Quando houve a remição por leitura, a experiência foi muito positiva. No momento em que for regulamentada, colocaremos em prática – diz a diretora.
Durante o piloto, 26 apenadas seguiram à risca atividades que, além da leitura das obras, incluíam oficinas de acompanhamento com contação de histórias, elaboração de resenha e prova oral sobre o livro lido.
Atualmente, mediante um termo de cooperação técnica com a UFGRS, está sendo reorganizado um programa que envolve rodas de leitura. Para tanto, está sendo realizada uma reforma em uma das áreas da penitenciária. Enquanto isso, uma ONG organiza o acervo de livros, submetendo-o a um processo de higienização e seleção. Na sequência, quatros servidores e seis apenadas darão sequência ao projeto.
Paraná, o pioneiro
A remição de pena pela leitura segue uma série de atos administrativos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho da Justiça Federal (CJF) e da Diretoria Geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, editados a partir de 2011. O Paraná foi o pioneiro no país, adotando a medida mediante uma lei estadual publicada em Diário Oficial, em 2012.
Com uma população carcerária de 20 mil presos, o Estado envolveu 31 professores de português no projeto e, até aqui, vem obtendo resultados considerados satisfatórios no que diz respeito a ressocialização: enquanto a taxa geral de reincidência é de 60%, entre os que aderem ao programa, o índice é de 20%.
"Os Sertões" valeu dois dias
Mesmo que ainda não tenha sido regulamentada no Rio Grande do Sul, o Poder Judiciário já tem concedido o benefício. A Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre confere o direito de quatro dias de redução de pena utilizando como parâmetro um livro entre 300 e 400 páginas.
De acordo com o juiz Sidinei Brzuska, o cálculo foi estabelecido a partir de um teste com presos lotados na 1ª Galeria do Pavilhão E do Presídio Central, que leem, em média, 32 páginas por hora. Com base nisso, um apenado que leu as 632 páginas de Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi beneficiado com dois dias a menos de condenação.
Na 1ª Galeria do Pavilhão E do Presídio Central há seis anos é desenvolvido de forma voluntária pela advogada e jornalista Carmela Grüne o projeto Direito no Cárcere, para presos em processo de desintoxicação de drogas. Cerca de mil presos já foram atendidos nesse período. No local, além de leitura, eles desenvolvem atividades musicais, grafite entre outras.
Em Rio Grande, a oração do livro
A obstinação da bibliotecária Catia Lindemann criou um dos maiores acervos prisionais do Estado, na Penitenciária Estadual de Rio Grande, onde ela desenvolve o Projeto Janela Literária. O espaço conta com cerca de 6 mil obras. Conforme ela própria conta, foi a prisão que a levou para a profissão.
– Eu trabalhava com outras artes, principalmente esculturas em espuma. Foi como conheci o cárcere, confeccionando material para uma peça de teatro. Fiquei sabendo que os presos não tinham acesso à leitura, e então resolvi agir – conta.
Catia, que dois anos depois concluiria o curso de Biblioteconomia na Universidade Federal de Rio Grande, juntou estantes velhas, recolhidas em lixões, e contou com a ajuda de presos, que as restauraram. As obras foram obtidas mediante campanhas de doações. Por fim, conquistou o direito de leitura para os cerca de mil presos.
A própria bibliotecária encarrega-se de levar os livros às celas dos presos que não tem acesso à biblioteca. E foi desta forma que ela vivenciou uma das tantas histórias já ocorridas no período em que atua de forma voluntária. Não havia jeito de os presos isolados na cela do seguro aderirem à leitura. Certo dia, um deles aceitou um livro. Como a televisão ficava permanentemente ligada, ele lia em voz alta. Os demais, que inicialmente reclamavam, acabaram aderindo a ideia.
– Então eles combinaram que todos os dias, às 18h, um deles iria ler um livro para os outros. E batizaram a atividade de oração do livro – conta Catia.