A esquerda usa a palavra golpe para definir a saída de Evo Morales da presidência da Bolívia. A direita prefere dizer que ele renunciou porque não tinha mais condições políticas. O número de prisões pode ser um bom indicativo para definir se a derrubada teve algo de legal ou legítimo — já estão presos os responsáveis da Justiça Eleitoral que teriam sacramentado fraude eleitoral a favor de Evo, como diz a oposição e a própria Organização dos Estados Americanos (OEA).
Se Evo e seus correligionários não forem presos e, mais difícil ainda, puderem participar de uma nova eleição, a narrativa de golpe enfraquece. Mas nada indica que isso vá acontecer. O próprio Evo afirma que há ordem de prisão contra ele, algo que os militares não assumem. Aliás, ninguém sabe se nas próximas horas serão convocadas eleições ou se as Forças Armadas, chamadas pela oposição a intervir para conter os tumultos pós-eleitorais na Bolívia, gostaram do papel de espantalho e vão se entronizar no poder.
O certo é que é tradição governos não terminarem na Bolívia. Evo Morales foi o 65º presidente dentre 84 governos que assumiram na Bolívia. Em 180 anos de independência, a média é de um governo a cada 25 meses (dois anos). Desde sua fundação como república, em 1825, a Bolívia teve 23 golpes de Estado que resultaram em derrubada de um governante. Além deles, houve 185 sublevações, motins, rebeliões e conspirações — média de uma a cada cinco meses — sem troca do governante. Quem narra isso é o ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005), que tentou ser mais uma vez presidente agora, contra Evo Morales, a quem acusa de fraudar as eleições.
Mesa faz a contabilidade da sofrida política boliviana em seu livro "Presidentes da Bolívia, entre urnas e fuzis" (2003). Ele e a oposição acusam o próprio Evo de dar um golpe, em 2016, ao ignorar o referendo que lhe negou o direito de concorrer a um quarto mandato. Evo disse que tinha o "direito humano" a concorrer e mais: que fora presidente duas vezes por outra Bolívia, a antiga, mas que tinha refundado o país e o transformado em República Bolivariana da Bolívia — o que lhe daria direito a concorrer. Insistiu, concorreu e venceu, em eleições que agora a OEA diz terem sido fraudadas. Acabou apeado do poder.
A maioria das revoltas na Bolívia é de cunho conservador, mas nem sempre. Em outubro de 1970, por exemplo, o general Juan José Torres derrubou outro militar, o direitista Alfredo Ovando Candia, e instaurou uma ditadura nacionalista de esquerda. Em um ano e meio de governo, ele determinou a nacionalização de minas de cobre, expulsou investidores norte-americanos, e fez alianças com movimentos camponeses, universitários e operários. Foi derrubado em agosto de 1971 pelo general Hugo Banzer, direitista, que ficou nove anos no poder e, depois, retornou eleito em 1997.
Outro caso singular é o do general Luiz Garcia Meza, que deu um golpe de Estado em 1980 e instaurou o que foi chamado no mundo inteiro narco-ditadura. Mais de mil pessoas foram mortas pelos militares naquele ano. Ele favoreceu exportadores de cocaína. Expulso do poder por outro militar, fugiu para o Brasil e acabou preso em 1995 por tráfico e crimes contra os direitos humanos, condenado a 30 anos de prisão. Morreu em 2018. Como se vê, de tédio os bolivianos não morrem.