A abordagem do agronegócio em três questões da primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) provocou uma reação imediata do setor, que viu no conteúdo a reprodução de informações que não retratam a realidade (veja abaixo). Entidades emitiram notas, e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) pediu que as perguntas sejam anuladas e o ministro da Educação, convocado para audiências na Câmara e no Senado. A polêmica, no entanto, também traz uma oportunidade: a de abrir as "porteiras" do campo para gerar conhecimento sobre a atividade, na visão da associação De Olho no Material Escolar.
Criada em 2021, tem como objetivo abrir um caminho de diálogo com educadores, escolas, autores e editores para que os dados referentes ao segmento sejam atualizados de forma "técnica e científica", como pontuada na nota da entidade. Uma das ações desenvolvidas, o Vivenciando a Prática, leva pessoas até propriedades rurais e feiras do setor, para que possam ver como é a rotina diária.
— Para a De Olho no Material Escolar, é zero surpresa (a questão no Enem). O exame é uma consequência do que vem sendo ensinado diariamente às crianças — pontua Letícia Jacintho, presidente da associação.
Um levantamento feito pela Fundação Instituto Administração (FIA), ligada à Faculdade de Economia e Administração da USP, apontou que 96,3% do material analisado (94 livros das principais editoras que forneceram ao Ministério da Educação no último Programa Nacional do Livro Didático) não têm fontes científicas.
— Nesse estudo, se viu muito artigos parciais, que deturpam o entendimento do aluno — completa Letícia.
Administradora, produtora rural, vice-presidente do Núcleo Feminino do Agronegócio e integrante do Conselho Superior do Agronegócio, ela cita um exemplo relacionado ao uso de defensivos agrícolas. A informação que aparece de forma recorrente, observa, é a de que o Brasil é o país que mais usa esses produtos:
— Mas não menciona que quando esse dado é relacionado à área, o Brasil cai para a 43ª posição. E à produtividade, para a 58ª. Na hora que você corta esse dado, "mata" ele.
A questão ponto a ponto
Uma das perguntas para a qual se pede a anulação é a de número 89, que menciona a produção no Cerrado (veja ao lado).
Professor da Faculdade de Administração da USP em Ribeirão Preto e da Fundação Getulio Vargas , o economista e engenheiro agrônomo Marcos Fava Neves pontua quais são os problemas conceituais do texto.
Cerrado subordinado à lógica do agronegócio
"O conhecimento segue sendo produzido, em todos os lugares, nas universidades, centros de pesquisa, nas agendas, nos projetos que cada pesquisador tem. Ninguém está subordinando as instituições de pesquisa e de ensino porque elas primam pela liberdade"
O capital impõe os conhecimentos biotecnológicos
"Os avanços da biotecnologia são absolutamente notáveis, e a utilização é franqueada a quem quiser usar, não é obrigatória. Vem muitas vezes para aumentar a produtividade das plantas e melhorar os sistemas de defesa. A biotecnologia é algo extremamente positivo para a geração de valor no campo, justamente por possibilitar a economia de recursos, maior eficiência e produtividade".
Mecanização do trabalho
"A presença de tratores evita que você use animais para puxar implementos, de colhedoras de cana permite que se pare de fazer a colheita manual, que era extremamente extenuante. A mecanização é algo que vem para ajudar a performance das propriedades e a redução da atividade braçal, da atividade pesada do ser humano".
Propriedade privada
"As águas, a semente e a terra, pela Constituição brasileira, são entes privados. O Brasil é um país que há muitos anos pratica a propriedade privada sobre os imóveis. A partir do momento em que alguém compra uma terra, um lote urbano, esse bem passa a ser privado. A semente, historicamente, é um produto que você pode comprar de empresas, como pode multiplicar, para uso próprio. É um bem privado, de entes privados."