O jornalista Daniel Giussani colabora com a colunista Giane Guerra, titular deste espaço
Os impactos e desdobramentos do escândalo bilionário da Americanas ainda são difíceis de serem projetados. Vai dos funcionários aos fornecedores, passando também pelos investidores, dos maiores até os minoritários. Esses últimos são representados pela Associação Brasileira de Investidores (Abradin). O podcast Nossa Economia, de GZH, conversou com o presidente da associação, Aurélio Valporto. Para ele, o que houve é "um golpe", que exige responsabilizações. Ele também avalia o papel do trio de acionistas de referência, Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira, no caso. Na visão de Valporto, "é muito difícil de acreditar que eles não sabiam de nada". Confira trechos abaixo e a íntegra no final da coluna.
Já tivemos outros escândalos financeiros envolvendo empresas de capital aberto, mas há algo tão gigante como estamos vendo na Americanas?
Há outros golpes muito grandes, como por exemplo os das empresas do Grupo X, do empresário Eike Batista, que rivalizam em volume com esse da Americanas, se formos corrigir monetariamente. Infelizmente, esses golpes se repetem no mercado de capitais brasileiro por diversos motivos, entre eles, a omissão da autarquia reguladora, a omissão do órgão autorregulador, que é a B3, e o despreparo do judiciário para lidar com essas causas e punir quando apontados os culpados. Esse tipo de evento é que tira a credibilidade do mercado. É e justamente por isso que o mercado de capitais brasileiro não exerce a sua função econômica, que é fomentar a economia.
Ter esses casos no mercado financeiro é ruim. Acontece também nas economias desenvolvidas, mas é ruim para uma economia que está tentando, há algum tempo, se posicionar.
Nos Estados Unidos, quase 80% da população tem ações na poupança, que é, basicamente, composta por participação em empresas de capital aberto. Lá se tem a cultura de fazer uma poupança com participações acionárias para viver de dividendos.No Brasil não temos essa cultura, até por conta do Ministério Público, na própria Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Estou criticando a CVM, mas coloco muita fé no novo presidente, o João Pedro Nascimento. Ele já mostrou uma índole muito boa, diferente de antecessores. A CVM é consciente da importância do mercado de capitais para a economia, e o novo presidente é consciente da sua responsabilidade. A oportunidade da vida dele é mudar o perfil da CVM, para ela deixar de ser um xerife banguela e passar a ser o xerife do mercado. Mas sim, em economias desenvolvidas, quando acontece algum escândalo desse porte, os responsáveis são exemplarmente punidos para desestimular qualquer outra pessoa que esteja pensando em produzir um golpe dessa natureza.
O que é ser exemplarmente punido?
O Bernard Madoff (ex- presidente da Nasdaq, responsável por um dos maiores golpes financeiros de Wall Street) tomou 150 anos de cadeia, por exemplo. Morreu na cadeia. O judiciário americano tem consciência de que quando ocorre um crime como esse, ele está lesando profundamente todo o financiamento da economia nacional, toda a economia do país. Infelizmente, aqui no Brasil não existem varas especializadas em mercado de capitais São julgados por varas empresariais. O que vejo são juízes absolutamente despreparados, tanto no conhecimento e na mecânica desses crimes, quanto em suas gravidades.
O senhor se refere ao que aconteceu com a Americanas como golpe?
Sim. Sem dúvida, isso é uma fraude. Ninguém sabe direito ainda a extensão, mas parece que é algo entre R$ 20 bilhões e que passa dos R$ 40 bilhões. É uma fraude, no mínimo, contábil.
Com pessoas que conheciam, e, se não conheciam, foram negligentes.
É difícil saber quem conhecia e quem não conhecia. Pedimos investigações à CVM para, com base nelas, tomarmos as atitudes, como a Abradin sempre faz, contra aqueles que devem pagar por isso. Nos Estados Unidos, como o investidor é sagrado, quando há um golpe contra investidores dessa natureza, a própria empresa é obrigada a ressarcir. "Mas a empresa não comete crimes. Quem comete crime de fraude é quem está lá dentro". Sim, é verdade, mas como é mais fácil cobrar da empresa, ela ressarce os acionistas através de uma ação de classes. Lá existem dispositivos em que os advogados são automaticamente remunerados quando acontece algo assim. Por isso, existe uma classe de advogados especializados em procurar falhas, para vigiar e fiscalizar o mercado.
No caso da Americanas, no Brasil, tem espaço na legislação para buscar esse ressarcimento aos investidores?
Essa é a nossa luta. Nós temos diversas ações civis em curso, mas não existe esse entendimento de que a empresa é culpada. Nos Estados Unidos a empresa é culpada, deve ressarcir aqueles investidores e depois cabe à ela correr atrás daqueles que a lesaram. O entendimento do judiciário brasileiro é que os culpados são as pessoas. Acontece que a legislação brasileira transforma as empresas em um verdadeiro biombo entre credores, acionistas e os criminosos. Então é muito difícil você chegar nos responsáveis. Agora, a CVM obriga que os diretores divulguem o que estão fazendo com suas ações. Isso serve para que o público investidor possa verificar se aquilo que os diretores estão fazendo com as suas ações é compatível com aquilo que eles informam ao público. No caso da Americanas, claramente, não era. Houve venda de cerca de R$ 250 milhões das ações da diretoria nas vésperas do período que antecedeu a divulgação desse fato relevante. Isso é um indício claríssimo de que eles sabiam. Um crime chamado "insider trading".
Não é primeira, nem a segunda nem a terceira vez que nós vemos isso acontecer por aqui.
Isso é um crime muito comum. É um roubo. Você está usando de um expediente para roubar demais acionistas da empresa. Essas pessoas têm que ser presas. Aqui no Brasil se prende o cara que pratica o chamado roubo famélico, aquele que precisa para comer. Rouba um litro de leite e vai preso. Mas esse tipo de criminoso dificilmente vai para a cadeia.
Tem toda uma cadeia econômica preocupada om essa situação, que vai dos fornecedores aos funcionários. Agora a empresa está em recuperação judicial. Como o senhor vê a possibilidade de a empresa sair dessa?
Houve uma fraude contábil e não sabemos a sua extensão. Por isso, não sabemos, também, o real resultado que a empresa vinha tendo. Ao que tudo indica, a empresa é capaz de gerar um lajida positivo (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização). Acredito que tendo uma mudança no perfil da dívida, é possível recuperar. Antes de ser presidente da Associação Brasileira de Investidores, eu sou economista. Então eu tenho uma preocupação muito grande com os impactos econômicos desse tipo de fraude sobre a economia brasileira. A Americanas exerce um papel muito importante. Ela é uma varejista importantíssima na formação de preços no varejo de toda a economia brasileira. Então é importante para a economia, para o país, tentar preservar a atividade da Americanas. Ela é um concorrente muito importante. É o maior varejista de lojas físicas. Então eu espero que ela possa ter uma recuperação judicial bem sucedida.
Como você vê a participação do trio de acionistas de referência?
É muito difícil acreditar que eles não sabiam de nada como alegam, porque outras empresas, por exemplo a Heinz, já foram penalizadas por práticas similares, embora em um volume muito menor. Os diretores são indicados por eles. Dois deles, o Lemann e o Sicupira, têm assento no conselho. O Sicupira, dos três, é o homem das Americanas. Na prática, são acionistas não controladores de 2021 pra cá. É estranho, aliás, que eles tenham deixado de ser controladores em 2021, quando fizeram a entrega do controle sem ganhar ágio nisso. Eles, por liberalidade, deixaram de cobrar ágil na entrega do controle. É um fato estranho. Os diretores que eles indicaram — porque ninguém ali é diretor sem a concordância deles — venderam ações no período que antecedeu a divulgação da fraude. A nota que eles divulgaram informando que não sabiam foi protocolar para tentar protegê-los. Se houver a comprovação de que eles tinham ciência, não precisam nem ter agido para que a fraude ocorresse, mas o simples fato de terem ciência já os torna passíveis a serem julgados criminal e civilmente.
Entre o ruim e o pior, optaram pelo ruim.
Eles estão dizendo que não sabiam para se proteger. Agora, acreditar que não sabiam, tendo esses fatos que eu acabei de falar para vocês? Diretoria vendendo ações, acertos no conselho... Das duas, uma. Ou eles são três patetas, ou sabiam. Se sabiam, eles têm que pagar, porque cometeram um crime. Então nós chegamos a uma encruzilhada. Sabiam, e por isso cometeram crime, ou não sabiam, e são três patetas.
Teremos muitos capítulos ainda.
Teremos. Eu espero que esse caso seja usado para uma virada na história do mercado de capitais brasileiro. Que o Judiciário passe a entender a responsabilidade que eles têm com toda a economia do país. Quem está pagando mais não são os minoritários, que eu represento. Quem está pagando mais por isso é gente que jamais ouviu falar em mercado de ações e vai sofrer as consequências econômicas. Isso é grave para a economia brasileira. Então nós esperamos que o Judiciário haja com muita seriedade, pois o mundo está olhando como o Brasil vai reagir a essa fraude.
Ouça a entrevista no podcast Nossa Economia:
Coluna Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Equipe: Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br) e Guilherme Gonçalves (guilherme.goncalves@zerohora.com.br) Leia aqui outras notícias da coluna