Presidente de uma das mais tradicionais indústrias do Rio Grande do Sul, James Bellini, que comanda a fabricante de ônibus Marcopolo, escreveu recentemente uma carta (leia na íntegra no final da coluna), na qual reflete sobre o futuro da empresa. Ele fala sobre cultura de inovação, transformação cultural e transparência. O documento, a conjuntura econômica mundial e o programa Caminhos da Escola foram assunto da entrevista do executivo ao programa Acerto de Contas, da Rádio Gaúcha). Confira trechos abaixo e assista ao vídeo da entrevista completa:
A carta fala muito da transformação da Marcopolo. Explique esse processo.
James Bellini: O que a gente está percebendo é que todo esse processo de transformação digital não acontece se não houver um processo, em paralelo, de transformação cultural. Como eu coloquei na carta, quando você fala em tecnologia, quando você fala em transformação digital, isso não se trata de tecnologia, e sim de pessoas. Não adianta você trazer tecnologia para dentro da empresa, se a cabeça das pessoas não está adequada a esse momento, pessoas que têm um mindset (mentalidade) muito conservador, e que não acreditam em transformação tecnológica, por exemplo. Se elas não mudarem essa forma de pensar, não adianta nada tu trazeres tecnologia. Então, a base para uma transformação digital começa por uma transformação cultural. Você tem que engajar as pessoas nessa nova forma de pensar. E isso a gente faz da forma como estamos fazendo aqui. Pelo menos, esse é o nosso entendimento.
A entrevista completa em vídeo:
O senhor fala em se tornar um conglomerado de startups. Por que essa expressão? Grandes empresas estão há alguns anos criando suas aceleradoras e ventures. É a intenção da Marcopolo?
O que eu quis dizer com isso é que, se você não avançar na mudança da cultura das pessoas, não adianta trazer muitas startups, porque o negócio não vai prosperar simplesmente trazendo elas. Às vezes, as pessoas pensam transformação digital vinculado a trazer muitas startups para o negócio. E não se trata somente disso. Isso é apenas uma parte do negócio. Só isso não vai trazer a empresa para a era digital.
Entra aí a iniciativa de voluntários, citada na carta. Como é isso?
Isso é uma coisa muito bacana. A iniciativa de criar esse grupo, que estamos chamando de MVPs, começou pela seguinte ideia: como a gente atrai voluntários para essa iniciativa de buscar uma mentalidade nova, para trazer tecnologia para empresa, ou para buscar novas formas de encontrar problemas e resolver esses problemas através da inovação, da tecnologia? Quando você traz voluntários que estão dispostos a trabalhar e aprender junto com a gente, e trazer problemas para cima da mesa, eles acabam sendo apoiados pela alta direção da empresa e trazem muitas novidades. Por exemplo, quando a gente fez o lançamento, tivemos mais de 500 participantes, o maior número em qualquer programa que já fizemos. Isso denota a ânsia que as pessoas têm de participar de coisas novas, de serem ouvidas, de trazerem os problemas lá de dentro da fábrica ou das suas áreas e, às vezes, não conseguem mostrar para a cúpula da empresa. Falam com o chefe, falam com o colega, com pessoas, às vezes, até de fora da empresa, mas não existe uma forma estruturada de ir para frente e acontecer. Então, a partir do momento que você cria esse grupo, você começa a identificar. E as pessoas não trazem só os problemas, elas já trazem a solução que vislumbram. As ideias que surgem são fantásticas. O que a gente está fazendo agora com a iniciativa é dar ouvidos para essa turma.
Muitas vezes, nem envolve tanta tecnologia. É uma questão de processo.
Às vezes, é uma questão de processo, mas o mais interessante é que essas pessoas, que são, na grande maioria, jovens, já estão pensando lá na frente, em como resolver aquilo de uma forma mais automatizada. Ou que tipo de empresa ou startup que eu conheço poderia me ajudar a resolver isso. Ou, por exemplo, aquele seminário que eu participei e que foi incentivado pela Marcopolo para que participassem, eu vi uma apresentação que poderia me ajudar a resolver isso. Às vezes, não é uma solução que envolva muita tecnologia, mas, na grande maioria das vezes, essas soluções propostas envolvem alguma coisa nova, alguma tecnologia diferente.
O senhor falou em transparência como pilar da transformação e que a cultura de varrer para baixo do tapete não é mais admitida. É uma crítica à empresa ou ao setor corporativo em geral?
O que acontece na grande maioria das empresas muito antigas, ou com estruturas tradicionais e hierarquias rígidas. Via de regra, grande parte das pessoas passa a conviver com aqueles problemas como se aquilo fosse um status quo: "bom, isso sempre esteve aí, a gente sempre conviveu com isso, para que irei me preocupar?". E como essas pessoas têm muita coisa para resolver, elas não gostam quando esse assunto aparece, porque é mais um problema. O que estamos dizendo é que isso não é mais válido. A gente quer que as pessoas tragam os problemas para cima da mesa. E o que a gente está, também, transmitindo para nossa gestão é basicamente o conceito de qual é nossa obrigação como gestores, qual é a nossa obrigação como executivos. Para que estamos aqui? Para resolver problemas. Porque, se não tivéssemos problemas para resolver, tudo aconteceria de uma forma automática. Então, quando eu digo "essa cultura de varrer para baixo do tapete não existe mais", ela ainda existe, mas está mudando. E nós vamos incentivar que ainda tragam os problemas para cima da mesa e que esses problemas sejam vistos como oportunidades, e não como um problema. Essa é, basicamente, a grande mudança que vamos implementar aqui. Já estamos implementando.
E sobre as vendas, as perspectivas para 2022 fecham ainda com as previsões? Como a empresa lida com a crise de ensinos e com o cenário econômico global de agora?
Para quem passou pelo que a gente passou nos últimos dois anos, eu te diria que nossa situação hoje é muito promissora. Estamos vendo um mercado voltar, uma grande retomada, por exemplo, de ônibus rodoviários e turismo. Quando falo rodoviário, são linhas regulares, intermunicipais e interestaduais, que praticamente tinham desaparecido. Alguns fatores propiciam esse crescimento: aumento de passagens aéreas e de combustível. Quem costumava viajar de avião de Porto Alegre para Curitiba, por exemplo, está vendo uma passagem caríssima. Essa pessoa procura um serviço leito, leito-cama, que ele possa sair de Porto Alegre e chegar em Curitiba no dia seguinte, de manhã, ou viajar confortavelmente em um ônibus onde vai trabalhando, curtindo a viagem. Custa 10% ou menos do que a passagem aérea. Já temos um primeiro trimestre que foi muito melhor do que ano passado e percebemos um crescimento bem substancial em relação a volumes dos dois últimos anos.
Os preços dos insumos ainda pesam muito?
Sim. A nossa inflação de materiais, que é como chamamos aqui, realmente está em um nível que eu não me lembro de outra época. Isso acontece por vários fatores. Há uma extensão do que aconteceu no ano passado, onde houve um grande crescimento dos insumos básicos, foi o aço, o alumínio, o plástico, tudo isso. Isso continua. Já não naqueles ritmos tão fortes, mas continua em um ritmo de 1,5% a 2% ao mês. É a média da nossa inflação. Outro grande desafio é a falta de matéria-prima. Principalmente, componente eletrônico. A cadeia dos componentes eletrônicos continua muito complicada. A gente tem sentido muito, principalmente na falta das entregas de chassi das montadoras para nós. Tem faltado muitos módulos de eletrônicos, que são componentes básicos para o chassi. Entre outros componentes de menor impacto. Mas esse realmente é um grande desafio e temos trabalhado todos os dias, influenciado bastante na nossa programação diária, mas temos conseguido driblar. Já estamos em um ritmo de crescimento bem interessante, inclusive com contratações.
Qual o principal mercado de exportação da Marcopolo?
É o Chile. Temos exportado muito para África também. E, neste ano, temos uma boa perspectiva de exportação para Argentina.
O fornecimento para o programa do governo federal Caminhos da Escola também é importante para a empresa. A investigação da suspeita de superfaturamento atinge a Marcopolo?
Atinge, porque é um programa muito tradicional e a gente está muito inserido. Obviamente que, uma empresa como a Marcopolo, a Mercedes Benz ou a Volkswagen, que têm os departamentos de compliance muito ativos, jamais entrariam em qualquer tipo de superfaturamento. O que acontece com o programa é a inflação, que está acontecendo no mundo inteiro e impactou o preço de tudo. Veja quanto subiu o automóvel, o combustível, várias commodities. Com ônibus não poderia ser diferente. Mas todos os procedimentos desse programa são perfeitamente lícitos. Certamente tem um componente político muito forte que estão usando. É ano de eleição. É uma pena. No mínimo, vai atrasar o programa.
São quantos ônibus?
Nesta fase, são 3.850 unidades. E tem prazo de entrega até o final do ano, quando vai ter a troca de motorização do EURO 5 para o EURO 6. Cada dia que passa, são algumas unidades a menos que o programa vai entregar.
Para encerrar, queria falar sobre a sucessão na presidência da Marcopolo a partir de 2023. Sim. Nós definimos que o André Armaganijan vai ser o novo CEO a partir de 2023. Vamos iniciar a transição de uma forma muito tranquila, organizada, planejada para, a partir de março de 2023, eu assumir novamente como executive chairman, na presidência do conselho, e o André assume como executivo, presidente da empresa.
Leia a carta na íntegra:
Coluna Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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