O ano de 2021 foi bastante delicado, com gargalos que afetaram diretamente a venda de veículos. Falta de componentes, custos maiores. Havia a perspectiva de que 2022 trouxesse uma normalização, mas começou uma guerra entre países que são grandes fornecedores de insumos. O programa Acerto de Contas, da Rádio Gaúcha, conversou sobre o assunto com o presidente do Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos do RS (Sincodiv-RS), Paulo Siqueira:
Com todas essas perspectivas de impactos que tendem a afetar também o setor automotivo, como vocês trabalham com esse cenário?
Esse é um cenário complexo, realmente, e que agora fica encadeado com os resquícios da pandemia, e que tendem a agravar aquela situação anterior. Em um primeiro momento, tínhamos a incidência de logística, dificuldades logísticas. Fábricas que tinham descontinuado sua produção por falta de material humano, ou por um regramento que incidia naquele momento de incapacidade produtiva. E essa incapacidade dava conta da escassez de alguns insumos, como os semicondutores.
A crise dos chips, certo?
É. Eles são muito importantes na produção dos veículos. Para ter uma ideia, um automóvel médio leva de 300 a 500 microchips desse tipo. A gente tinha uma expectativa que essas circunstâncias fossem se readequando, tomando sua atividade normal, até metade deste ano e que terminássemos 2022 com uma retomada do ponto onde paramos.
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Esses 500 chips fazem todas as ligações eletrônicas do veículo?
Exatamente. Antigamente, nos veículos analógicos, isso era transistores, ou válvulas. Hoje, são comandos inteligentes que fazem com que determinados equipamentos instalados em um carro - e hoje, são muitas - respondam no seu acionamento. Os carros hoje têm equipamentos robotizados, como ABS, outros controles de tráfego, assistentes de direção, que usam muito esses componentes.
No período mais complicado, nos Estados Unidos, algumas montadoras optaram por vender veículos sem alguns dos semicondutores que não atrapalhavam na segurança e operação do carro, mas que, por exemplo, ajudavam a economizar combustível. Mas foi uma opção...
Houve alguns momentos em que essa opção foi levada a efeito. Mas como eu dizia, essa progressão da regularização da cadeia de suprimentos, que envolve também a logística e esses materiais especializados... Logo no início de 2022, estamos vivendo uma guerra que parece setorizada em um determinado ponto do mundo, mas que tem consequências muito graves. Talvez até superiores à pandemia, dependendo do prazo pelo qual ela se estenderá. Imagino que até os envolvidos na guerra pensavam que seria algo muito curto, de poucos dias. E não é assim. A gente tem assistido aos noticiários. O próprio presidente russo, Putin, dá sinais de algum desgaste. Já setorizando também a guerra. Mas o fato é que essas duas nações envolvidas têm participação estratégica e de extrema importância na produção automotiva.
A Rússia produz paládio, que é um metal usado no setor. Recentemente, eu li que a BMW e até a Volks suspenderam a produção em países europeus porque estavam com dificuldade de importar itens da Ucrânia. A participação desses dois países está entremeada na cadeia de suprimentos automotivos?
Exatamente. O aço, o petróleo. O petróleo, não só na questão de combustível, mas principalmente na produção de plástico. O automóvel tem cerca de 30 mil componentes na sua montagem, e 30% disso é plástico. E plástico vem do petróleo. Então, o aço, o petróleo, o paládio, o cobre, o néon, o níquel. Todos esses metais e produtos, esses dois países atuam. A Rússia, por exemplo, detém 40% da produção mundial de paládio. O paládio é usado nos catalisadores dos veículos, que hoje, por força de lei, alguns foram retirados de produção pela inadequação que eles apresentavam até então. E veículos modernos, não eram veículos antigos. Porque a indústria entendeu que seria melhor retirá-los do mercado, do que fazer a adequação necessária em função do Proconve L7, que é a regulamentação ambiental que exigia uma evolução desses veículos em termos de redução de resíduos poluentes. E o paládio é um elemento essencial na composição desses catalisadores, ou conversores catalíticos. Que é uma peça que vai próxima ao escapamento do automóvel e faz com que esses gases diminuam seu potencial de poluição. Pois bem, a Rússia detém 40% da produção mundial de paládio. Então, se ela, em contrapartida, deixa de fornecer esse elemento, temos uma severa redução na capacidade produtiva do veículo. Por sua vez, a Ucrânia detém 50% da produção do néon, usado na produção de semicondutores. Então, o que era difícil fica quase impossível, porque a Ucrânia não tem intenção de provocar, até o momento, nenhuma restrição aos países do ocidente, mas essa produção dela fica severamente prejudicada.
O que as montadoras têm dito às concessionárias?
As montadoras ainda não têm, aqui no Brasil pelo menos, dado alguma informação mais objetiva e vinculada à questão da guerra na Ucrânia. Não se tem alguma notificação por parte das montadoras que leve em conta esse cenário. Ao contrário, até. Vínhamos de uma questão de progressão em relação a normalidade da produção. Esses efeitos, no momento, são mais sensíveis na Europa. Essa semana, a Volkswagen fechou uma fábrica na Europa, por questões de natureza logística. Porque justamente os portos da Ucrânia, em Odessa, que é uma cidade estratégica e importante. Nessa cidade de Odessa, tem duas empresas que respondem por 50% da produção mundial do néon. Estão no olho do furacão da guerra. E esses efeitos têm sido mais sentidos hoje na Europa, mas certamente o que está sendo sentido lá vai chegar aqui também. O Brasil tem uma relação muito extensa de produtores europeus que, na carência de determinados insumos, a gente imagina que irão repetir o que aconteceu durante a pandemia, e privilegiar mercados mais próximos, de primeiro mundo, como Estados Unidos, Europa, em detrimento de outros mercados, incluindo o Brasil.
A como está a oferta de modelos? Identifiquei, recentemente, que ainda há modelos em falta, que ainda há filas grandes para comprar veículos. E o complicado é que não é por demanda aquecida, mas porque não se consegue suprir uma demanda mínima.
Exatamente. Isso é muito curioso. O Brasil tem uma capacidade produtiva de cerca de 5 milhões de veículos por ano. E até, para falar do efeito da guerra, dependendo do prazo que essa guerra pode se estender, já existe previsões que falam da possibilidade de se perder a produção, em dois anos, de cerca de 5 milhões de veículos. Então, cinco milhões de veículos é a produção no Brasil de um ano inteiro. É muita coisa. E estamos desde de antes da pandemia trabalhando em torno de 60% desse volume. Então, a capacidade instalada no Brasil é muito acima daquilo que a indústria está produzindo e do que o mercado está consumindo. Então, dá para entender que a população brasileira tem uma demanda reprimida muito grande, mas que também foi afetada pelos efeitos da pandemia. Mais recentemente, o aumento de taxa de juros, da Selic. Mas todo esse cenário, a gente tinha uma ideia de reversão no curto prazo, da metade do ano em diante. Os primeiros dois meses do ano revelaram um volume de emplacamentos que nos remeteram a situações anteriores de 10 anos. De volumes que operávamos há 10 anos - e aqui não houve nenhuma guerra, nenhuma catástrofe que dizimou a população. Então, a gente entende que são efeitos de variações econômicas, mas a população, que cresceu bastante, tem essa intenção de compra. A questão é afinar a oferta com alguma adequação de taxa de juro - que a gente já imaginava que tivesse alguma reversão logo em seguida, com o suprimento dessas matérias-primas. O próprio dólar, que foi um grande vilão, está voltando a níveis de bastante tempo atrás. Mas a questão não é de preço. É uma questão de suprimento. Esses países envolvidos na guerra tem uma participação estratégica no fornecimento de muitos dos produtos que os veículos consomem, de uma forma resolutiva para que possam ser resolvidos. Ou seja, temos que aguardar um pouco. Mas as previsões eram, até antes da guerra, de retomada durante este ano, dada a solução desses pontos que citei antes.
Seguindo esse cenário, os preços devem continuar pressionados? Eles subiram muito no ano passado.
Sim. Uma parte importante desse aumento de preço advém dessa carestia de insumos. Mas uma outra parte também, em função de uma política das montadoras, advém de oportunidade de mercado, que é uma lei natural de oferta e demanda. Onde tem espaço para aumentar o preço, isso vai ocorrer. Essas variáveis devem continuar ocorrendo. A gente espera aumentos de 2% até 3% em cada 30 ou 60 dias. Essa tendência de alta vai continuar ocorrendo. E aqui se há alguma perspectiva positiva é que, já que as pessoas estão aguardando algum melhor momento para comprar um automóvel, talvez esse melhor momento seja agora. Porque o amanhã, para quem tem necessidade de veículo, é incerto em termos de preço. E a tendência é, sim, de alta.
A sua empresa é a San Marino, certo? Vocês trabalham com que tipo de veículos?
Sim. Veículos de passeio e comerciais leves.
As estatísticas do Sincodiv englobam outros veículos também. Quais são os segmentos que o senhor identifica que há maior resiliência a esse cenário econômico? E quais aqueles que preocupam mais?
Se a gente dividir o número de veículos comerciais leves e de passeio, ele responde por cerca de 70% de tudo que se consome no país. E esse é o fiel da balança. E esse segmento é muito afetado por essas circunstâncias todas que estamos falando, por taxa de juros, por expectativas que a população possa ter diante da economia e dos cenários eventualmente adversos que ela possa estar enxergando. Houve antecipações em dezembro, depois veio o período de férias. Aí, há impostos, IPTU, materiais escolares, IPVA... Todas essas questões dão um certo arrefecimento em uma demanda que já estava oscilante. Esses comerciais leves e veículos de passeio representam a maior parte desse cenário. Isso interfere muito nas projeções. Em termos de resiliência, podemos citar o setor agrícola. Caminhões, máquinas, que cresceram muito em função do desenvolvimento da agricultura. Agora, temos um ponto de interrogação: as safras começam a ser colhidas logo em seguida, e normalmente, grande parte do dinheiro vai para o mercado automotivo, renovando frotas, os próprios produtores comprando veículos de uso particular...
Caminhonetes...
Isso. Essa expectativa o mercado tem. O mês de março deve ter um aumento bem significativo. Em torno de 12% no Rio Grande do Sul, e de 17% no Brasil, em relação aos meses anteriores deste ano. Mas isso também vinculado a uma equação do número de dias úteis. Embora ainda sobre alguma coisa de efetivo crescimento. É uma notícia interessante em função de que pelo menos não cai, o que poderia acontecer. Mas então, esse segmento de transporte foi muito afetado durante a pandemia, e ele vem respondendo com muita ênfase na sua evolução nos últimos tempos. Eu falei essa questão vinculada à produção agrícola que, normalmente, destina um capital muito grande para o consumo de veículos de toda espécie.
E os veículos elétricos? Qual é a tendência? Eles têm batido recordes de venda, mas ainda é uma fatia muito pequena. Os valores são altos, mas tem uma pegada muito atraente para o consumidor.
Os veículos elétricos vêm crescendo de forma exponencial, ano a ano. Existe uma diferença entre veículos elétricos e os eletrificados, que seriam híbridos. Essa proporção é algo como sete para um: temos sete veículos eletrificados e uns três elétricos. O ano passado foi algo como 30 mil veículos nesse gênero todo, sendo um terço totalmente eletrificados. Tudo que eu falei para automóvel comum vale muito mais para os veículos elétricos, porque todos aqueles produtos especiais que falamos são a alma desse carro. Então, devem ter uma produção muito prejudicada, se tudo ocorrer de uma perspectiva negativa. Todavia, as circunstâncias cabiam para que esses veículos sejam cada vez mais consumidos. Nos países europeus, especialmente, já há data para que veículos a combustão sejam retirados da circulação das cidades.
Montadoras também têm colocado prazo para retirada da linha de produção.
Exatamente. Claro que os veículos que estão em circulação precisarão ter peças e componentes de recomposição. Não será 100%. Mas tudo caminha para que, em um prazo talvez de 20 anos, invertamos essa avaliação, falando que o veículo à combustão seja uma minoria em face dos veículos elétricos.
Coluna Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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