O versinho da meninice continua na memória: "As coisas boas do mundo, tu podes ter sem comprar – o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, as ondas, o mar". Nunca soube do poeta-autor. Quando criança, só guardamos nomes dos bichos. Meu cachorrinho era Totó. Meu gato, Timochenko, pela cara idêntica à do general russo que, naqueles dias, fustigava as tropas de Hitler.
Na inocência alegre da infância, tudo vira apelido e alcunha. Ao crescer, o oportunismo e a maldade fazem da vida o oposto do que foi. Entre nós, há tempos, o horror está em cada canto. Nos esquartejamentos das guerras do narcotráfico, no assalto dos marginais de rua ou no bilionário roubo mancomunado dos grandes da política e do empresariado, tudo é tétrico.
Por mais diversos que sejam eles, todos têm um detalhe comum, além do roubo: os apelidos ou alcunhas.
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Na infância, a alcunha era alegria. Nas mãos do crime, tenta esconder o delito e proteger o criminoso.
Mas nenhum Zé do Bode perverso do narcotráfico, que manda matar e esquartejar, tem foro privilegiado. E, assim, no fundo é menos perigoso que o Caranguejo, o Justiça, o Índio ou o Botafogo, que comandaram ontem, ou comandam hoje, nosso Parlamento com essas alcunhas nas planilhas de propina das grandes empreiteiras. Eduardo Cunha ("Caranguejo") perdeu o privilégio, mas Renan Calheiros ("Justiça") ou os atuais presidentes do Senado, Eunício Oliveira ("Índio") e Rodrigo Maia ("Botafogo"), da Câmara dos Deputados, continuam protegidos da chuva de sentenças duras da Lava-Jato.
Nomes, apelidos e somas recebidas constam nos arquivos da Odebrecht e outras empresas. Ali estão políticos (ou politiqueiros?) de quase todos os partidos – salvam-se só o PSOL e a Rede.
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Até os três homens-fortes do círculo íntimo do presidente Michel Temer ali estão: os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco e o líder no Senado e presidente do PMDB, Romero Jucá. Nas planilhas da corrupção, eles são "Primo", "Angorá" e "Caju", respectivamente.
Senadores e deputados misturam-se na lista, boa parte com nomes de bicho. O senador Édison Lobão, do PMDB (sem alcunha, pois já tem nome de bicho graúdo) surge como o elo corrupto que passa do governo Lula ao de Dilma, dos quais foi ministro de Minas e Energia, mandando na dadivosa Petrobras e nas gorjetas da hidrelétrica de Belo Monte. Hoje é figura-chave de Temer e preside a Comissão de Constituição e Justiça, que faz andar ou manda arquivar tudo o que passe pelo Senado.
Temer reafirma, sempre, que "simples acusação" não significa culpa nem condenação. Em nove meses, porém, cinco ministros envolvidos em corrupção já "renunciaram" e, agora, essa antecipada defesa de outros mais soa como desinteresse em ter um governo limpo de suspeitas e sem máfias.
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Com "foro privilegiado", ministros e parlamentares safaram-se agora da rigidez do juiz Sergio Moro na Lava-Jato e caíram no Supremo Tribunal. A denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot será dura, mas o STF é flexível e lento.
De janeiro de 2001 a março de 2016, das 404 ações penais (de foro privilegiado) julgadas pelo Supremo, apenas três resultaram em condenações, comprovou agora uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Em 71 ações, os acusados saíram ilesos e 276 prescreveram ou passaram ao foro comum. Coroando tudo, a chicana de recursos adia decisões de outras 34, enquanto 20 permanecem em "segredo de Justiça".
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Não se veja o STF como benigno ou brando. Mas, ao ser tribunal constitucional, seus paradigmas não são os do juiz do crime.
Agora, o próprio ministro Luís Barroso (do STF) considerou "absurdo" que parlamentares e ministros acusados de crimes praticados fora da função tenham foro privilegiado, como no caso atual.
Pode o acusado escolher quem deva julgá-lo, como fez Temer com seu ministro Angorá? O STF impediu que Dilma fizesse isto com Lula, mas, agora, tudo indica que nosso destino vai de sapos barbudos a gatos brancos, com os bichos da infância virando monstros.
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