A solidariedade e o amor desapareceram de tal forma da vida cotidiana que, às vezes, só as tragédias nos despertam para os gestos de afeto e nos fazem avaliar como é belo viver no outro. Como seria diferente o mundo se nossos atos tivessem um toque daquele amor profundo que não pensa em recompensa, que ama por saber que amar está em dar, não em receber!
A tragédia aérea que, nestes dias, faz de Chapecó uma espécie de centro do planeta, por um lado revelou como a desídia e a petulância podem transformar-se em crime. O piloto que se gabava (a si mesmo) de sobrepor-se ao espaço e aos minutos vencendo quilômetros com combustível mínimo, desafiava os ares e cometia um absurdo. Com isto, sentia-se poderoso, maior que o caos. "A sorte não me abandona", devia dizer a si mesmo.
De fato, era um desses perigosos casos patológicos disfarçados no dia a dia, com os quais convivemos sem perceber, até o instante em que "a casa cai".
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No outro lado, como contraponto do horror, surgiu dona Alaíde como uma espécie de sol da meia-noite. A mãe do goleiro da Chapecoense, morto na tragédia aérea da Colômbia, é um desses casos incomuns de amor inato, profundo e abrangente, capazes de superar até a dor.
Quem poderá esquecer aqueles instantes em que ela – altiva e terna, decidida e amorosa – consolou o repórter de TV que a entrevistava sobre a dor de ter um filho morto na tragédia?
Não há dor mais dilacerante do que a da mãe ou do pai que enterre um filho. Quebra-se aí o rito da vida ou da História. Até a tradição se esvai. A normalidade é que os filhos enterrem os pais e nessa sucessão reside a continuidade da espécie. Ou a eternidade da própria vida.
Dona Alaíde viveu essa dor dentro de si de uma forma tão pungente e com tanto amor, que a lucidez se multiplicou e ela entendeu o sofrimento daqueles que tinham de ocultar que também estavam feridos e sofriam. Os jornalistas, colegas de outras vítimas, tinham de se fazer fortes, inacessíveis à dor, impermeáveis como uma rocha para, assim, continuar a informar.
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No ápice do amor pelo filho morto, a mãe do goleiro Danilo viu-se inundada de amor por todas as vítimas. Ou pela humanidade. Talvez pareça piegas lugar-comum escrever "inundada de amor". Mas, apesar das maledicências, os lugares-comuns são sempre grandes verdades. Não nos envergonhemos do lugar-comum, portanto!
Sim, pois ela repartiu seu amor e o distribuiu aos jornalistas que, na consciência – pela profissão e pela amizade – eram irmãos, pais ou filhos de outros mortos, mas que se disfarçavam de robôs programados para não sofrer.
Tal qual os médicos, enfermeiras, bombeiros e outros mais que trabalham em luta constante com a tênue corda da vida, também nós, jornalistas, temos de disfarçar o pranto e fingir que a dor não nos afeta.
Não só o poeta, como dizia Fernando Pessoa, mas muitas vezes também o jornalista, "é um fingidor que finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente".
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Só quem se despe da jactância de si próprio, daquele egoísmo inerente à condição humana (e que teima em não nos deixar ou se esconde quando buscamos ser humildes) consegue agir como dona Alaíde agiu.
Até o nome ela pronunciou tão rapidamente às câmeras de TV, e com tal humildade, que não se sabe, com exatidão, se é Alaíde, ou Ilaídes, como chegou a aparecer, ou até Ilíada.
Mas se Ilíada fosse, ela – a mãe do goleiro Danilo – não seria nenhum espelho da Antiguidade grega. O poema de Homero gira em torno da ira e da disputa entre dois generais, com versos de guerra e rancor. Ao contrário, o gesto e as palavras de dona Alaíde compõem um poema de paz escrito em atos, palavra e abraços.
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Em vida, o filho foi herói desportivo (defendeu pênaltis indefensáveis) e ela deve ter absorvido isto como dádiva ou prêmio à própria vida. E retribuiu, consolando a todos pelas vidas perdidas na tragédia aérea.
Nestes tempos de engano e sordidez, em que tudo é engano e até os alimentos são enganosos (e nos levam à doença e ao aniquilamento) essa mulher simples – a mãe do goleiro – surge para advertir que a solidariedade e o amor não têm fim e ainda nos guiam.
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