Como parece uma palavra obscena, preferi omitir do título para não ofender os pudicos, mas aqui no texto, escondidinho, onde ninguém lê, eu posso contar para vocês: cutaqui. Isso mesmo, cutaqui. Expressão que teve seu uso registrado na língua portuguesa na boca de apenas um personagem histórico: minha avó.
Era a maneira como ela, uma imigrante judia polonesa, dizia "escuta aqui". Os netos, adolescentes, riam se entreolhando, mas ela nunca entendeu a graça, tampouco se deixava corrigir. Funcionava mais ou menos assim: "Cutaqui, tu não vai levar os strudels pra casa?", "Cutaqui, tu já parou de comer? Mas nem comeu nada!".
Boa parte dos usos do cutaqui estavam relacionados à alimentação. Era a sua maneira de transmitir afeto. A vó tinha muitas especialidades, das mais europeias às mais brasileiras: strudel, fluden, gefilte fish, bolinho de galinha, bolo de massa, pastel de carne, pastel de batata, carne de panela. Ninguém conseguia convencê-la de que havia comido o suficiente para poder deixar a mesa.
Alguns de tino mais comercial costumavam sugerir que ela fizesse strudels para vender. No Bom Fim, bairro onde os imigrantes judeus primeiramente se instalaram em Porto Alegre, muita gente haveria de querer a tradicional guloseima europeia. Mas a vó, pelo que consta, tinha dificuldade em cobrar das pessoas pela comida.
Filhos e netos faziam encomendas à vontade, mas uma coisa era inegociável: ela jamais dava a receita. Essa lei, que deve constar em algum texto sagrado, jamais era dita, mas não se arrancava informação dela sobre o assunto. Um primo jura que aprendeu a fazer strudel, mas ninguém testemunhou uma mísera unidade feita com a tal receita.
Meus avós, que deixaram a Polônia no entre-guerras, fugindo do antissemitismo, tinham muitas histórias trágicas para contar. Sem jamais querer apagar ou edulcorar tudo que aconteceu, eles não transmitiram mágoa às novas gerações. No Brasil, os imigrantes prosperaram. Aqui era a Terra Prometida.
Guardamos as memórias mais afetivas. Meu avô ensinava dobraduras insuspeitadas e tinha um armário de brinquedos para os netos, além de paciência infinita. Tomava cachaça, jamais vodca. Minha avó era a única pessoa do mundo que não admitia receber presente, apenas dar. Quando falava cutaqui, todos paravam para ouvir.