Na literatura, o realismo fantástico proporcionou clássicos — e nosso Erico Verissimo soube enveredar com graça por este campo com seu divertido e instigante Incidente em Antares. Mas o cortejo de cadáveres insepultos a empestar uma cidadezinha é uma alegoria virtuosa apenas no terreno ficcional. Transposta para o mundo da Justiça, assume feições sinistras. E desgraçadamente é o que se vê no já irrespirável ambiente institucional com as decisões liberticidas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
Incontrastável em seu apetite para decidir à revelia da lei e da Constituição, e para manejar os cordéis que sujeitam líderes políticos ao arbítrio de um grupo de togas poderosas, a Suprema Corte fuzilou direitos e garantias individuais.
Um caso, em centenas: a cabeleireira Debora dos Santos, encarcerada desde 17 de março de 2023 pelo ministro Alexandre de Moraes. O motivo: ter escrito na estátua em frente ao STF “Perdeu, mané”
Presunção de inocência, direito à ampla defesa e muitas outras salvaguardas do cidadão ante o autoritarismo são, hoje, entes finados, em decomposição. E já cheira mal, muito mal, o desfile de putrefações jurídicas dos direitos civis assassinados à queima-roupa. Vivemos sob um tribunal de exceção.
Um caso, em centenas: a cabeleireira Debora dos Santos, encarcerada desde 17 de março de 2023 pelo ministro Alexandre de Moraes. O motivo: ter escrito na estátua em frente ao STF “Perdeu, mané” — a resposta que o presidente da Corte deu a um brasileiro que perguntou se ele iria “deixar o código-fonte (das urnas eletrônicas) ser exposto”. Ninguém pode ficar preso um ano e três meses sem denúncia, mas Debora ficou.
Só agora a PGR a denunciou — não por pichação, mas por crimes como associação criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito. Sua “arma”: um batom, apenas. O que ela escreveu na estátua saiu com sabão.
Rafa, de seis anos, gravou vídeo ao lado do irmão Caio (nove) implorando ajuda à mãe. A resposta de Moraes aos meninos é um clássico de perversidade: a mãe deles foi transferida para outro presídio, distante 229 quilômetros da casa da família.