“No dia 29 de março de 2017, a suprema corte venezuelana se apoiou em um pretexto banal para rasgar a fantasia e assumir de vez o que já estava ficando difícil de dissimular: o conluio do Judiciário com Poder Executivo, sob o comando de Nicolás Maduro. Vinha-se percebendo, havia muito tempo, que as decisões do Supremo Tribunal de Justicia de la República Bolivariana de Venezuela serviam de escudo para as medidas totalitárias de Maduro e, ao mesmo tempo, de espada sobre a cabeça dos vários grupos oposicionistas. Mas era um processo gradual, com um mínimo de escrúpulos, para não dar tanto na vista. Até que a noite desceu pesada sobre Caracas naquele finzinho de março: alegando sentir-se ‘desacatada’, a suprema corte venezuelana decidiu fechar o parlamento e assumir, ela mesma, as funções dos deputados. E ponto final.”
Com estas palavras, descrevi, em 20 de dezembro, no texto Caracas-Brasília, o instante em que a Venezuela se converteu em um país em que os três poderes atuam como um único grupo de comando. O Supremo Tribunal, pela óbvia razão de estar dominado por gente de Maduro, se tornou ator e cúmplice de um regime cujas graves violações a direitos humanos mereceram o repúdio das principais democracias do planeta. Um parlamento eleito com maioria oposicionista em 2016 teve seu poder castrado porque Maduro não aceitou a derrota nas urnas, causada pelo rechaço popular à disparada da inflação e seu efeito inevitável: o empobrecimento da classe média e a miserabilização dos pobres.
O que veio, depois, não surpreende. A prisão de opositores e a sufocação dos críticos com medidas de perseguição e intimidação se tornaram comuns. As eleições têm cartas marcadas. Maduro reina montado no Supremo Tribunal. Têm o controle das forças armadas e das forças togadas. Omissos se omitem, e oportunistas cuidam de seus negócios. Os descontentes não têm para onde correr, a não ser para as fronteiras – aqueles que conseguem, claro. Cerca de 6 milhões, eis o tamanho do êxodo. Imagine você e mais 50 milhões de brasileiros deixando casa, família, uma vida para trás, em fuga desesperada. Na proporção, é o que se deu na Venezuela.
Mas nem tudo são lágrimas. De acordo com o presidente da República Federativa do Brasil, onde Maduro desembarcou na calada da noite sob honras oficiais, o que se diz do regime de Maduro é “narrativa”. A afirmação de Lula estarreceu o socialista Gabriel Boric, que preside o Chile, e o liberal Lacalle Pou, presidente do Uruguai. Até mesmo quatro ex-ministros de Hugo Chávez, padrinho de Maduro, vieram a público para testemunhar que não há “narrativa” alguma no sofrimento do povo venezuelano. “A Presidência brasileira não sabe que os principais partidos da oposição foram cassados por decisão do Supremo Tribunal de Justiça?”, indagaram.
Lula sabe, suponho. Mas não recriminará o modelo venezuelano de governar à margem da Constituição sob a chancela de um Supremo Tribunal. Ele sonha com um mandato em que terá nove de 11 votos do Supremo Tribunal a favor do que ele quer, ou contra quem ouse desagradá-lo.