O general espia pela fresta da cortina. É povo, meu Deus!, mais até do que ontem. Lá embaixo, no carro de som, uma moça tinha puxado Pai-Nosso e Ave-Maria instantes atrás, e ele se impressionara com aquele murmúrio de centenas, talvez milhares de vozes, um coro enorme de gente com joelhos fincados no chão quente de um sol de 30ºC. Desligou o ar-condicionado para afastar a desconfortável sensação de conforto. Voltou à mesa, afastou o exemplar do jornal que não abria faz tempo, puxou o celular. “Juiz suspende compra de blindados pelo Exército.” Ficou imaginando o efeito da notícia sobre seus comandados, já indignados o bastante com a situação do país. Fósforo aceso no paiol...
As rezas tinham cessado, e veio um coro de “Forças Armadas salvem o Brasil”, repetido umas 20 vezes, lhe pareceu. Mal terminou e um coro lateral começou a puxar algo que o general só foi entender direito lá pela quarta ou quinta vez. “Se for preciso... a gente acampa... mas o ladrão não sobe a rampa.” Pensou que terrível vai ser se ele tiver que obedecer à ordem de um presidente que foi preso por corrupção e lavagem de dinheiro, e tal ordem implicar o uso da força contra o povaréu acantonado em frente ao quartel. Fechou os olhos, comprimiu os lábios, mas pensou positivo. Ainda não estamos na Venezuela... Tamborilou os dedos na mesa. Ainda não... Puxou notícias de Maduro. Leu sobre a intenção do PT de convidá-lo para a posse. Se esse crápula vier, não vai prestar. Uma notícia mais embaixo falava que o ditador venezuelano considerava o resultado da eleição no Brasil uma vitória para a “Pátria Grande”, um colar de regimes socialistas na América Latina. Maduro comemorava três décadas do Foro de São Paulo, criado por Fidel Castro e Lula em 1990 – e que ele certa vez leu, no jornal que já não abre faz tempo, que o tal Foro era invencionice, puro delírio. Lá embaixo, começa a tocar a Canção do Expedicionário, que sempre comove o general. Ouvira muita história de seu avô sobre os pracinhas que estiveram na Itália combatendo o nazifascismo.
– Por mais terras que eu percorra/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que volte para lá... Sem que leve por divisa/ Este V que simboliza/ a Vitória que virá!
Pensou na diversificada procedência daquelas pessoas lá embaixo quando escutou a estrofe inicial. “Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do engenho... Das selvas, dos cafezais. Da boa terra do coco. Da choupana onde um é pouco, dois é bom três é demais... Venho das praias sedosas, das montanhas alterosas, do pampa, do seringal... Das margens crespas dos rios, dos verdes mares bravios da minha terra natal!”
Voltou a espiar pela fresta da janela. Um faixa de bom tamanho dizia “Brazil was stolen” e, logo abaixo, “Entreguem o código-fonte”. Pensou que ali estava o ponto. Tinha lido o relatório do Ministério da Defesa apontando vulnerabilidades da urna eletrônica e visto outras denúncias graves. Por que não entregaram ainda o código-fonte para sanar as dúvidas e pacificar o país?, pensou o general. O que insistem em esconder?
O telefone tocou.