Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar
Foram muitas as Copas da minha vida, e seguramente a mais especial foi de 1970, aquela dos 90 milhões em ação, Jairzinho dando chapéu e fazendo o sinal da cruz após o gol, Pelé e Tostão resplandecendo no México, a Copa do tricampeonato mundial, enfim. Mas eu tinha só oito para nove anos, e 1970 se tornou um arquivo interditado para minhas incursões memorialísticas por causa da morte prematura do meu pai, Seu Jamil, poucas semanas depois. De modo que me fixo na Copa de 1974, marcante por tudo que me ensinou, como só os grandes reveses conseguem ensinar.
No velho sobrado da Rua Riachuelo, em Cachoeira do Sul, tínhamos lido que Zagallo fizera pouco caso da Holanda, que seria a adversária do Brasil em um jogo decisivo. Valia passagem para a final da Copa da Alemanha. O Tetra em jogo! No jornal sujo de sangue onde veio o guisado que o Gordo buscou no açougue, e o meu irmão sempre pedia para embalar em página esportiva ou policial, dava para ler que o treinador vitorioso no México achava que não havia razão para se preocupar tanto assim com os holandeses. Eles é que deviam se preocupar com a seleção tricampeã do mundo.
Parece que estou ouvindo a aflição da Rosa Alice, crítica e cética como sempre. "Só quero ver..." Minha irmã já tinha quase 15 anos, devorava o noticiário esportivo e pesava muito bem o famigerado retrospecto do time armado por Rinus Michels, em contraposição a ausências de peso no lado brasileiro — Pelé, em fim de carreira, Tostão e outros.
Fomos, eu e meus irmãos, pra frente da TV, pilha de nervos. Mais tenso estava o Jorge, que aos 20 anos fazia um curso no Senai e teve de acompanhar o jogo pelo rádio. O almoço de arroz, feijão e ovo frito que dona Irene e dona Rosa colocaram na vianda dele não sentou bem com o molho holandês que lhe aplicaram naquele 3 de julho de 1974.
Fim do primeiro tempo, zero a zero, mas o placar justo já deveria apontar um bom 2 a 1 para a Holanda. Tensão no velho sobrado. Na volta do banheiro, invejei o alheamento dos meus irmãos crianças, o Jamil e a Rosa Maria, que só queriam saber quando é que liberaríamos a TV para eles verem Zé Colmeia, Flintstones, etc. Na cozinha, minha mãe e minha avó só se preocupavam com o esquema tático das panelas, que o dinheiro era pouco e as bocas pra alimentar, muitas. Décadas depois, pensaria nelas enquanto um consultor discorria sobre a importância de "ter meta, foco e resiliência".
— A Holanda tá melhor — sentenciou a Rosa Alice, no intervalo.
— O Brasil tá perdido em campo — diagnosticou Gordo, que dois anos depois fundaria um clube-laboratório para seus experimentos táticos, o União, cujo estatuto redigimos (e eu datilografei) em uma Olivetti Lettera 32.
Voltando para o segundo tempo.
Com cinco minutos, o inevitável que se desenhara desde os primeiros instantes: Neeskens ("Néskens"), com a pontinha da chuteira, se antecipa a Luís Pereira, e Leão mal tem tempo de se atirar na bola. Inútil, 1 a 0 Holanda. Gritos e imprecações na vizinhança, a cachorrada latindo, um alvoroço danado.
— Vai te deitá, jaguara — berrou minha vó.
A verdade é que éramos todos jaguaras silenciados pelos homens de camisa branca e uma esquisitíssima meia cor de laranja. Era o carrossel holandês, saberíamos depois. A "laranja mecânica".
Colorados da família, como a prima Dalva, tinham uma razão extra para sofrer: em campo, Valdomiro e Carpegiani, dois ídolos vermelhos. Eles, como todos, estavam zonzos, aturdidos por um futebol que unia técnica, objetividade, um preparo físico que dava suporte à estratégia de atacar em bloco e defender em bloco e — além de tudo isso — uma capacidade superior de discernimento. Os holandeses trocavam de posição sem se perderem em campo. Logo veio o segundo gol, aos 20 do segundo tempo: dele mesmo, Johan Cruyff.
Nosso zagueirão, Luís Pereira, perdeu a cabeça. A seis minutos do final, deu no meio do holandês, assim como Alexandre de Moraes faz com a Constituição brasileira semana sim e outra também.
Só que lá tinha um juiz de verdade, que lhe deu um cartão vermelho na hora.