Não é que eu não gostasse – ou que não goste – da minha vida tal como ela é. Não se trata disso. Até porque, de certa forma, minha vidinha nunca deixou de ser razoavelmente satisfatória, mesmo quando absorvida pelo convencional, ou absorta com o absurdo ao redor.
O caso é que sempre preferi viver a vida dos outros. Ser Thoreau às margens de Walden, caminhante solitário, sem ver ninguém por quatro anos – e depois passar a noite no bar falando como é ser Thoreau por um dia. Ou ser Pero Vaz de Peninha, ops Caminha, ao marulhar das ondas em Porto Seguro, pegando a pena para descrever um Novo Mundo ao Velho.
Ou embarcar no Pequod, com Melville e Vitor Ramil, espantado com as tatuagens de Queequeg, como se aquele arpoador selvagem fosse o homem ilustrado de Bradbury, e as inscrições multicores de sua pele ganhassem vida e numa delas um viajante pisasse numa borboleta no tempo dos dinossauros mudando os destinos da humanidade.
Ou ser Euclides em Canudos, testemunhando o massacre da gente do Conselheiro e depois se meter numa cabana de zinco para criar uma obra prima às margens do Rio Pardo. Ou ser Belmondo aos trambolhões em Acossado, ou Howard Carter descobrindo Tutancâmon, ou Rimbaud sob o sol que arde nas miragens da Abissínia. Ou Poe em Baltimore e o negro corvo a grasnar: “Never more, never more”.
Pintar, amar e comer com Gauguin no Taiti. Ir para cama com Justine e Melissa na tarde tórrida de Alexandria. Viajar com Jack e Neal naquele Hudson 1949, com os cactos lançando sombras fantasmagóricas no deserto do brujo Don Juan e do gringo viejo Ambrose Bierce, onde Walter e John Huston ainda buscam o amaldiçoado tesouro de Sierra Madre.
Ou ser Bowie, ou ser Dylan – for just one day.
Ou ser Quintana fumando na redação do Correio do Povo, sabendo que eles passarão, e nós passarinhos, à sombra das raparigas em flor, entre lambe-lambes e engraxates e pétalas lilases que se desprendem aos suspiros na praça: “Cedo demais, cedo demais”.
Cavalgar com Pat Garret e Billy, the Kid, num crepúsculo cor de sangue, o luar luzindo no riacho afogueado feito os estilhaços de um espelho partido, e bater às portas do céu, até o letreiro subir avisando: “This is the end, my beautiful friend”. The End.
O sonho acabou e eu nem dormi. Mas o pesadelo não será real, pois nunca acreditei em nada que não fosse escrito, filmado, pintado, ou não soasse como uma canção do Roberto... Zimmerman.