Foi em 29 de maio – 505 anos e um dia antes do meu aniversário. Sim, 29 de maio de 1453, um Domingo de Pentecostes. A fabulosa Constantinopla (antes Bizâncio, hoje Istambul), então capital do Império Romano do Oriente, estava cercada há 53 dias pelo poderoso exército dos turcos otomanos, sob o comando do sultão Maomé II: 90 mil homens fortemente armados e bem treinados. Para defender sua cidade, o imperador Constantino XI contava, mal e mal, com sete mil soldados e 35 mil civis. Ao raiar daquele dia histórico – que na escola nos disseram ser o fim da Idade Média e o início da Era Moderna –, as muralhas da cidadela tombaram e Maomé II cavalou por uma avenida de sangue e morte até o coração da cidade que jamais voltaria a pertencer à Cristandade.
Reza a lenda que durante todo o período em que durou o cerco, dentro das muralhas de Constantinopla – tidas como inexpugnáveis – estava rolando um concílio no qual os clérigos discutiam ardorosamente sobre o sexo dos anjos, se é que eles tinham um.
Trata-se de uma falácia, é claro. Ou melhor, duma metáfora, a revelar que mesmo em face do avanço de um inimigo muito mais poderoso, duas alas do cristianismo ortodoxo se mantiveram radicalmente divididas. Tais facções estavam bem definidas: por um lado, os chamados “unionistas” (ou henōtikoi); de outro, os anti-unionistas (anthenōtikoi). Os primeiros eram intelectuais de alto escalão, burocratas e clérigos que cercavam o imperador, favoráveis à aliança com os cristãos do Ocidente; os outros, monges, clérigos de baixo escalão e o “povo”. Em Roma, o papado – corrupto e intolerante – já havia deixado claro que qualquer discussão sobre uma possível ajuda militar do Ocidente à Constantinopla só seria possível após uma “rendição” incondicional dos ortotodoxos e sua submissão à fé católica. Assim, a suposta discussão sobre o “sexo dos anjos” na verdade era o racha entre as duas facções bizantinas: os radicais, estavam decididos a arriscar tudo para garantir a integridade de sua fé, e aqueles que estavam dispostos a fazer concessões (oikonomiā) para salvar seu império.
Estamos às vésperas da mais importante eleição do Brasil desde 1910, quando o civil Rui Barbosa (a pena) enfrentou o militar Hermes da Fonseca (a espada). Decidi falar sobre o sexo dos anjos para dizer que sou um “unionista”, favorável ao voto útil e capaz de qualquer coisa para me livrar do inominável.