Foi uma espécie de Santa Ceia – só que com 32 convivas em vez de 12, e nenhum Judas, é claro. O jantar deu-se em frente ao paraíso – a Praça Paraíso, no coração de Porto Alegre. A hóstia era uma bola – a primeira a rolar na capital dos gaúchos. E a eucaristia consistiu em transformar o que antes fora vermelho em azul – sangue azul. Mas o que nasceu naquela noite de 15 de setembro de 1903, nunca foi um clube “de alemães ricos”. Os 32 apóstolos reunidos no Salão Grau, em frente à então Praça Paraíso (hoje Praça XV), eram pequenos comerciantes, alguns alemães, outros luso-brasileiros. Eles fundaram um grêmio, um grêmio de futebol, em Porto Alegre. Chamaram-no Grêmio de Futebol Porto-Alegrense.
O Grêmio, dono da maior torcida fora do eixo Rio-São Paulo, é do povo e é de todos
“Grêmio”, explica o dicionário, quer dizer “lugar onde se encontra abrigo e repouso”, “reunião de pessoas com interesses comuns” ou “seio”, “peito”, “regaço”. Os rapazes que se reuniram ali para fundar o primeiro time da cidade chamavam-se Joaquim, José, Pedro. Seus sobrenomes eram Ribeiro, Dias, Chaves e Barcelos. Outros eram Koch, Bohrer e Haeffner. Naquela noite, seu sangue se tornou azul, mas eles jamais foram da “elite”. A elite curtia remo, ciclismo e corridas de cavalo. E o futebol nascia para ser popular – graças ao Grêmio, aliás.
A narrativa de que o Grêmio era um clube exclusivista, dos “alemães da elite”, começou a ser forjada em 1909, quando uns arrivistas que chegaram tarde até para as migalhas do jantar-fundador decidiram criar seu próprio clube. O drama cristalizou-se quando, mal saídos das fraldas, desafiaram o Grêmio para um confronto – e levaram 10 x 0. Passaram então a dizer que até a ata de fundação do Grêmio fora redigida em alemão e outras falácias mais. Como foi preciso adaptar a realidade à ficção, o ponta Moreira passou a ser chamado de “von Moreirosky”. Mas os nomes Mostardeiro, Brochado e Xiru não foram mudados.
Como todos os times de futebol do Brasil, o Grêmio não aceitava negros. Demorou mais do que outros a fazê-lo pois se manteve no amadorismo até fins da década de 1930 e passou por um período sombrio nos anos 1940. Mas além de ser o time do coração do mais notável homem preto da história do Rio Grande, Lupicínio Rodrigues, o Grêmio de Tarciso, Juarez, Alcindo e Roger não foi contra a Liga da Canela Preta, como outras agremiações que andam por aí. O Grêmio teve a primeira torcida gay do Brasil e uma das primeiras só de mulheres. Leo Gerchmann já contou essa história e ontem lançou novo livro sobre o tema. Só que a IVI segue aí – e dizem que até aqui. Mas a era das fake news se encaminha para o fim.
O Grêmio, dono da maior torcida fora do eixo Rio-São Paulo, é do povo e é de todos. Parabéns, Imortal Tricolor, teus 119 anos de glórias cantam o Rio Grande com amor.