Na minha sempre ponderada, irretorquível, inabalável e modesta opinião, uma das consequências mais concretas do movimento chamado de "politicamente correto" foi o surgimento de seu antípoda, o "politicamente incorreto" – que, julgo eu, consegue ser ainda pior. Porém, se existe algo mais nefasto que ambos são versões capengas de fatos que circulam pela internet: informações míopes que os incautos tratam de propagar pelas redes e, por meio delas, espalham-se com a voracidade letal das fake news. Mas ainda mais grave é quando o politicamente correto se junta com uma versão zarolha. Daí sim surge um perigoso híbrido.
E a mistura pode ser fatal.
Parece ser esse o caso que envolve a palavra "mulato", que já fora resgatada do gueto em que tentaram confiná-la no passado e agora há os que queiram banir de vez do léxico, com base na versão falaciosa de que ela provém de "mula". Embora (in)certos dicionaristas e filólogos de fato se arrisquem a defender essa tese esdrúxula, o fato é que qualquer análise mais profunda explica e desvenda a real origem de "mulato". A palavra provém do termo "mowallad" ou "muwallad" ("muladi", em versão latinizada), cunhado para definir o indivíduo nascido de pai árabe e mãe estrangeira; por extensão, "filho de pais de etnias diferentes", presente em vetustos dicionários árabes desde o século 13 (quando, ao que me consta, europeus e africanos ainda não tinham chegado ao Novo Mundo). Cabe lembrar também que a mula – fruto híbrido do cruzamento do asno com a égua – só surgiu nos Estados Unidos no século 18, bem depois do advento do mulato. Na dúvida, consulte The Oxford English Dictionary.
Saiba, pois, que mulato é palavra linda, convergente e altissonante, inúmeras vezes exaltada, estudada, pintada e cantada em prosa e verso por veneráveis intérpretes do Brasil, da picardia luminosa dos quadros de Di Cavalcanti e Portinari aos insinuantes livros de Gilberto Freyre; da prosa mordaz de Lima Barreto e Aloísio Azevedo às letras tropicalistas de Caetano e Ary Barroso. Ah, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos – e cada vez mais alto.
Assim, ao ler na minha, na sua, na nossa Zero Hora que "mulato é expressão racista que precisa sair do seu vocabulário", pensei que deveria acrescentar mais um adjetivo à minha sempre tão ponderada, irretorquível, inabalável e modesta coluna: ela também é muito elucidativa. E revela que estamos num jornal – e em um mundo – plural. No qual, é claro, eu sempre tenho razão. Pelo menos aqui no meu quadrado.