Foi a vitória da máscara contra a bisnaga, do salão contra a rua, da elite contra o povaréu prosaico e mal ensinado. Foi, por fim, "o triunfo da razão contra o limão de cheiro", como já houve quem tenha dito. Mas o fato é que quando o Carnaval substituiu o entrudo, o que se deu foi a vitória de uma festa afrancesada contra uma genuína explosão das ruas – explosão que, de alegria, foi se tornando progressivamente violenta. Até que a sociedade houve por bem acabar com o folguedo popular de origens lusitanas que tão bem havia se aclimatado ao Brasil. E foi então, por volta de 1850, depois de mais de 200 anos de farras e banhos e discórdias e pequenas vinganças, que o "entrudo" virou "Carnaval". E instalou-se primeiro nos salões, a seguir nos corsos de automóveis e depois nas elegantes "batalhas de flores", das quais só os donos de veículos "adornados" tomavam parte, enquanto o povo, bestializado, olhava a banda passar.
Entrudo provém da palavra latina "introitus", que significa entrada. Referia-se, é claro, à entrada da quaresma, que começava no dia seguinte ao entrudo, ou seja, na quarta-feira de cinzas. Era uma festa pré-cristã que fora mantida pela Igreja, e que noutras paragens europeias já era chamada de Carnaval, do latim "adeus à carne", pois anunciava a entrada na abstinência quaresmal. De Debret a Machado de Assis, inúmeros cronistas descreveram o entrudo e seus excessos, focando-se no papel desempenhado na festa pelos limões de cheiro.
Limões (ou laranjas) de cheiro eram bolas de cera (pouco maiores que uma bola de tênis) cheias de água perfumada que os foliões arremessavam uns nos outros. À medida em que escravos libertos, mulatos e brancos desvalidos passaram a participar da festa, os limões de cheiro viraram quase granadas de sua insatisfação – e seu líquido interior mudou de odor. A "burguesia" trancou-se em casa, e ficou tramando o fim da festa, enfim proibida em 1854.
Machado urdiu um conto, Um Dia de Entrudo, que se passava "no tempo em que ao Carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, as bisnagas e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores".
Nas últimas décadas, os blocos voltaram a tomar conta das ruas, furiosamente – quase black blocs. Nunca tive samba no pé, mas aproveitei o embalo para, ao longo de 15 anos, vestir meu nariz de palhaço e desfilar por aí em homenagem à quadrilha que se manteve tanto tempo no poder. Esse ano, estava sem saber o que fazer: se saía de verde-oliva, de rosa-goiaba ou de azul calcinha. Então, lembrei-me do entrudo e do limão de cheiro, e matei a charada: sairei de laranja! Só não sei se de Coronel Suco cantando o hino, ou se de Fênix Laranzoni. Mas com certeza desfilarei sem ordem unida no Bloco do Suco de Laranja (o BSL), com minha bisnaga repleta de líquido amarelado. Cuidado comigo!