Depois de integrar o quadro da Fifa entre 2011 e 2018 e representar o Brasil nas principais competições do cenário internacional, incluindo as duas últimas Copas do Mundo, Sandro Meira Ricci vive uma nova fase desde o anúncio da aposentadoria do apito no mês de julho. A distância da pressão dos gramados permite, agora, que o mineiro de 43 anos tenha tranquilidade em falar abertamente sobre questões polêmicas relacionadas à arbitragem. Foi o que ele fez em entrevista à Rádio Gaúcha (ouça a entrevista abaixo).
Ricci reconhece que os erros de arbitragem estejam ocorrem em quantidade acima da média no Brasileirão, mas pondera que não exista apenas um culpado para a fase ruim. Ele percebe um momento de muita insegurança dos homens do apito por conta da falta de respaldo da CBF e um nível de cobrança demasiado dos clubes, que colaboram pouco com o processo de melhoria.
O ex-juiz também se manifesta favorável ao apelo do Inter pelo uso do árbitro de vídeo. Ele considera inadmissível que a competição nacional seja decidida por erros do apito e defende que o VAR deveria ser implementado já na próxima rodada da competição nacional. Confira a íntegra da entrevista:
Qual o motivo para tantos erros de arbitragem na reta final do Brasileirão?
Eu tenho tido mais tempo agora para acompanhar a arbitragem e sinto que os árbitros estão bem inseguros. O (Vanderlei) Luxemburgo já dizia que time que tem medo de vencer não ganha. É a mesma coisa. Árbitro que tem medo de errar não acerta. O que estou sentindo é que existe uma pressão muito grande sobre a arbitragem, que aumenta a cada rodada em razão da importância dos jogos, mas também pelos próprios erros da arbitragem que deixam o mundo do futebol bastante inseguro. Eu achei que quando eu saísse da arbitragem os problemas fossem acabar, mas estou sentindo pelo menos uma coisa positiva. O problema não era só eu (risos). A gente tem alguns árbitros que têm atuado muito bem. O Anderson Daronco, o Bráulio Machado e o próprio Raphael Claus estão muito seguros, mas há outros que têm deixado a desejar e acabam comprometendo a arbitragem e o próprio futebol.
O que pode estar deixando a arbitragem mais insegura?
O campeonato Brasileiro não pode ser decidido por um erro de arbitragem
Não acredito que o motivo seja o VAR. Tenho ouvido muita gente falar isso. Acredito que seja uma fase. A arbitragem é um time. Deveria ser o 21º time do Campeonato Brasileiro. É assim que a Fifa sempre considera em uma Copa do Mundo, como o 33º time. Infelizmente aqui não tem esse apoio da CBF. A arbitragem está vivendo uma fase muito ruim e isso tem trazido muita insegurança. Quando você tem árbitros atuando bem, isso gera uma confiança geral nos jogadores, dirigentes e treinadores. Eles costumam protestar menos e criar menos situações que dificultam o trabalho, porque estão confiando na arbitragem. Quando a fase é ruim, piora o comportamento dos jogadores, treinadores e até da imprensa. Essa pressão acaba deixando os árbitros inseguros.
A CBF acabou com os sextetos fixos de arbitragem na 22ª rodada. A partir dessa mudança, os erros começaram a ocorrer com mais frequência, talvez pela falta de entrosamento. Os problemas fizeram com que a entidade voltasse atrás na medida. Faltou sensibilidade da CBF na hora de mexer em nesse time que estava "ganhando”?
Isso interferiu, mas acho que o momento da competição também agrava a situação. Um mesmo erro da arbitragem cometido no começo do campeonato teria muito mais repercussão se ocorresse agora. Se vocês lembrarem, na primeira rodada do Brasileirão houve um pênalti mal marcado para o Vitória e, no mesmo jogo, o Flamengo teve um gol em que o jogador estava claramente em impedimento. Se acontecesse hoje, seria muito mais grave do que naquele momento da competição. É claro que as equipes fixas facilitam o trabalho da arbitragem. Os árbitros já estão acostumados a lidar com aqueles assistentes. Tanto é que a Fifa adota isso nas competições. Acho que voltar atrás é importante, assim como a CBF deveria ter a humildade de voltar atrás na decisão de não utilizar o VAR. Eu não sou favorável ao pensamento de que agora não faz sentido ter o VAR porque estamos no final do campeonato ou porque já houve outras partidas com erros de arbitragem. Acho que se você adotou uma medida que é comprovadamente equivocada, você deve mudar. O Campeonato Brasileiro não pode ou não deveria ser decidido por um erro de arbitragem tanto na parte de cima quanto na parte de baixo. Hoje, como está a situação, é muito provável que a gente veja isso acontecer. O VAR é uma ferramenta que deveria ser utilizada. O Inter está liderando essa ideia e eu colocaria já na próxima rodada. O regulamento prevê isso. Se não era para ter, não deveriam ter colocado. Acho que seria muito bom utilizá-lo no final do campeonato.
O Inter está liderando essa ideia e eu colocaria o VAR já na próxima rodada
Você é a favor dos árbitros assistentes adicionais (são os que ficam atrás do gol)?
É muito curioso isso. A minha equipe fixa do ano passado era composta pelo Émerson de Carvalho e o Marcelo Van Gasse, que estiveram comigo nas duas últimas Copas do Mundo, e os meus dois adicionais eram os do jogo do Inter contra o Atlético-PR. Um deles era o Eduardo Cordeiro Guimarães e o outro era o Rodrigo D'Alonso Ferreira, que estava apitando a partida. Eu tive uma experiência maravilhosa com eles. Eu não gostava de adicional, não era a favor. Esses dois árbitros me convenceram com profissionalismo e qualidade de que o adicional pode ter uma participação muito positiva. Devo muito das minhas boas atuações a esses dois. Infelizmente no domingo, para deixar claro, houve um erro na decisão da arbitragem em relação ao pênalti a favor do Inter. No entanto, sou a favor do adicional graças a esses dois árbitros que erraram nesse jogo. Mas é claro que, com o VAR, esses profissionais se tornam inúteis, porque acaba resolvendo as situações que hoje os adicionais resolvem.
O que está faltando com maior urgência em termos de ajustes para que o VAR tenha um funcionamento melhor?
A prática leva à excelência. O treinamento já foi feito e agora precisamos rodar a máquina. A gente vai ter erros. Houve problemas na Copa do Mundo, na Conmebol e haverá na CBF. Isso faz parte de um processo de implementação de um sistema novo. Existe um custo, mas tenho certeza de que será muito mais favorável do que desfavorável a implementação do VAR. Eu poderia falar que os árbitros precisam ser treinados, mas eles já estão. O que falta são jogos reais. É que nem no campo. Quanto mais jogos o árbitro fizer, se ele tiver qualidade, melhor vai ser o desempenho. Por isso, o VAR deveria ser implementado na próxima rodada. Sei que isso não vai acontecer, mas é isso que defendo.
Os clubes precisam parar de ver chifre em cabeça de cavalo
Sem a utilização do VAR, o que poderia ser feito ainda neste Brasileirão para melhor a arbitragem?
A comissão de arbitragem deveria ter mais cuidado com as escalas. Não concordo com essa história de que o (Anderson) Daronco, por ser do Rio Grande do Sul, não pode apitar jogos dos times de São Paulo e do Rio porque o Inter está envolvido na briga pelo título. Você parte do princípio de que duvida do seu próprio árbitro. Não é possível isso. O Daronco é um árbitro de qualidade, do primeiro nível. Se não é o melhor, está entre os três melhores do Brasil. Você não pode desperdiçar o Daronco porque o Inter está envolvido na disputa e deixar de utilizá-lo em um jogo como Corinthians e São Paulo. É uma regra idiota, desculpa o termo chulo. Eu acho um absurdo. Eu tenho certeza de que a CBF não suspeita dos árbitros. Na verdade, está apenas cedendo a uma pressão dos clubes. Lá atrás o São Paulo reclamou porque um árbitro do Rio de Janeiro apitou e o Flamengo estava envolvido diretamente. Como o Odair (Hellmann) tem falado nas coletivas, todo mundo precisa ajudar a arbitragem. Os clubes precisam parar de ver chifre em cabeça de cavalo. Tem que acabar com isso no futebol.
Quais são os teus planos a partir da decisão de abandonar a arbitragem depois da Copa da Rússia?
Eu amo futebol. Tanto eu como a minha esposa Fernanda (Colombo), que foi assistente aspirante Fifa pela CBF. Hoje a gente está prestando um serviço para um veículo de imprensa aqui de Brasília e a nossa ideia é continuar neste meio. A gente fez especialização em jornalismo esportivo, fizemos alguns cursos e pretendemos dar sequência. Temos alguns projetos e pretendemos seguir no meio, sim. O bom de ter parado com a arbitragem é que hoje eu tenho mais tranquilidade para falar de todos os assuntos. As coisas se tornam mais claras também. Hoje eu consigo ser menos corporativista, enxergar alguns erros e ter uma opinião mais clara sobre tudo.