Após o seu poderoso e rico Atlético-MG perder para o modesto e operário Ceará, Cuca, um técnico experiente, quase sessentão (tem 58 anos), invadiu o campo. Foi tirar satisfações com o árbitro Leandro Vuaden, que durante muito anos ostentou o escudo da Fifa. Para o padrão tupiniquim, normal.
Treinador e cartola culparem o apito é mais antigo que andar para frente no Brasil. Só que, desta vez, transtornado diante de um Vuaden impassível, o tranquilão Cuca enlouqueceu. Transtornado, chamou-o de "vagabundo" repetidas vezes. Depois, de "gaveteiro", que na gíria do futebol significa "comprado". Ainda ameaçou dar uns tapas em Vuaden se o encontrasse na rua. Um papelão, ao fim e ao cabo. Foi tudo para a súmula.
Cuca vai pegar suspensão lendária, de muitos jogos. Meses, talvez. Da maneira com aconteceu, não duvido até que inviabilize sua permanência como técnico do Galo. Pediu desculpas depois, disse que estava de cabeça quente sem muita convicção, mas aí já era tarde. O STJD não tem outra alternativa. Se não der o exemplo agora, a maionese desanda.
Quando Cuca insistiu no "vagabundo" como base da sua ofensa, quem sabe aquela capaz de irritar Vuaden e fazê-lo reagir, pensei no quanto expressões e palavras podem mudar totalmente de significado.
Tomemos o caso em questão. Chamar alguém de vagabundo como algo pejorativo é novidade. Não faz muito tempo, era elogio. Havia um certo ar romântico. Artistas recitavam a vagabundagem. Daniella Mercury fez sucesso com o hit "Nobre Vagabundo".
"Sou perecível ao tempo
Vivo por um segundo
Perdoa meu amor
Esse nobre vagabundo"
O diretor Hugo Carvana batizou um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro de "Vai trabalhar, vagabundo". Fez tanto sucesso que ganhou parte 2. A música tema era de Chico Buarque. Viralizaria, houvesse redes sociais nas décadas de 1979 e 1980. O personagem principal não gostava muito de emprego fixo, mas era uma pessoa do bem, adorada pelos amigos, que só queria viver a vida plenamente.
Já era a ideia de que a qualidade de vida não pode ser vista como algo ruim, depois adotada como mantra por grandes empresas para seus funcionários, inclusive os engravatados. Amores, experiências, paixões, estar com a família. Conjugava-se o verbo vagabundear fartamente, no sentido de cuidar do espírito. Aquele ócio criativo e terapêutico. A banda britânica Supertramp (Supervagabundo) fazia sucesso falando de sonhos, paz e amor. Você já deve ter ouvido o seguinte refrão, esse brasileiro, que dá vontade de sorrir:
"Sou vagabundo, eu confesso!
Da turma de 71
Já rodei o mundo
E nunca pude encontrar
Lugar melhor prum vagabundo
Que um rio à beira-mar."
Só de uns tempos para cá que vagabundo virou xingamento. Política, claro. Quem o adota deve achar pior do que palavrão. E se alguém tomar como gesto de carinho? Pode acontecer. É bem provável que o autor da suposta ofensa não vá entender nada, até por aí está uma capacidade rara para cultuadores de ódios. No futebol, outros termos mudaram de sentido. Houve um tempo em que nada era mais importante do que ser ponteiro feito Garrincha.
Os times jogavam com dois. Aí eles foram perdendo espaço em nome de povoar o meio-campo até sumirem. Ser apenas ponteiro se tornou algo menor. Ultrapassado. Que fossem chamados de atacantes, ao menos, até para arrumar emprego. Décadas depois, eles estão de volta no mundo todo, porém rebatizados: extremas. E tem também a maneira como são percebidos determinados comportamentos.
Goleiro que jogava os pés era louco e irresponsável. Alguns eram mesmo, tipo o colombiano Higuita, mas o alemão Neuer é o emblema da disciplina e da seriedade. Hoje, um jovem goleiro morre na base se não souber trocar passes. Todos querem ser Neuer. É cafona só saber usar as mãos. Zagueiro que saía jogando? Enfeitado. Balaqueiro. Se ganhasse esse rótulo, jamais seria xerife.
No futebol atual, os técnicos exigem zagueiros que sejam quase meias, rápidos, com toques de primeira, sem chutão. Se os da frente e do meio estão marcados, a bola vai ficar mais tempo com os zagueiros. Que saibam jogar. Faz sentido. E o boné? Nada era mais brega do que jogador de boné. Só se via boné em posto de gasolina.
Em 2021, Neymar chega para os jogos de gravata, brinco de diamente, óculos caro — e boné. Dizem que há de vários tipos, com abas que indicam o estilo de cada um. A gurizada adora. Idem para tatuagem: de marginal a fashion.
Anote aí: logo ali adiante, quando alguém chamar outro de vagabundo aos gritos, ambos se abraçarão celebrando os novos tempos, sorrindo com o despertar da esperança. Que está perto. Tudo muda, embora talvez nunca saia do lugar.