No Inter, como se sabe, ele pegou a parte mais difícil do trabalho de reconstrução do clube nos primeiros anos do novo século, quando não havia dinheiro para contratar e a formação de time passava por meninos da base e garimpagem de mercado. Ao fim e ao cabo, este projeto cresceu e se multiplicou, resultando no Mundial de 2006. Muricy Ramalho saiu antes da consagração colorada em Tóquio, mas sem ele lá no início nada teria acontecido.
Os grandes títulos são fruto de um processo, nem sempre envolvendo as mesmas pessoas. Não é diferente neste Grêmio, que há anos tem uma mesma linha de gestão e de conceito de futebol, primeiro com Roger Machado e agora com Renato. É a palavra mágica: continuidade. Não dá muito ibope e nem acessos no Instagram, mas é o caminho mais curto para grandes conquistas.
Encontrei Muricy Ramalho, tri brasileiro com o São Paulo e dono da América no comando do Santos, nos corredores das cabines da Arena, após a vitória suada, difícil e sofrida do Grêmio sobre o Lanús. O técnico que trocou a casamata pelos comentários no SportTV está mais magro e semblante infinitamente mais tranquilo do que quando gesticulava à beira do campo.
Após as rápidas saudações e elogios profissionais de praxe (nessas encontros rápidos depois de algum tempo sem se ver um fica sempre elogiando o outro, você já reparou?), passamos alguns instantes em silêncio, como se pensássemos a mesma coisa. De fato, ele falou:
– Esses caras sabem jogar. Não se assustam, não saem do plano de jogo. Não importa o que aconteça. Isso é a segurança do treino.
Acrescentei a ele que quatro dos cinco jogadores que mais acertam passes na competição, conforme as estatísticas, são do Lanús: o zagueiro pela esquerda Braghieri (suspenso pelo terceiro amarelo, é desfalque granate enorme), o lateral-direito Gómez, o volante Marcone e o enganche Martínez. E arrematei, antes de devolver para Muricy, já que ouvi-lo era o que me interessava.
– Se houvesse mais qualidade na troca de passes em si, o Lanús mudaria de patamar. O jogo termina com mais posse do Grêmio.
– Verdade. Tem também o fato de não agredir ofensivamente atuando dessa maneira. Mas teve um período no primeiro tempo em que eles (os argentinos) controlaram o jogo com naturalidade – advertiu Muricy.
– Sim – concordei. – Durante uns 10 minutos, a posse de bola do Lanús bateu em 80%...
– Exato. E tudo isso sem um craque ou mesmo um grande jogador neste trabalho ideológico com a bola – arrematou o comentarista do SporTV. – É bacana ver um clube pequeno e com orçamento limitado vir aqui no Brasil e encarar um gigante ancorado no trabalho diário e na organização tática.
– Dá para montar um time tão competitivo sem estrelas? – perguntei.
– Claro que dá. Essa é a mensagem legal que o Lanús passa.
Muricy entende que o Grêmio será campeão. Considera o time de Renato superior, e com capacidade para resolver as armadilhas táticas de Jorge Almirón. Aliás, Renato já fez isso no segundo tempo, soltando Edilson e Cortez (Acosta e Silva não atacavam mesmo) e adiantando as linhas, a começar pela defensiva, compactando o time. O gol de Cícero veio na bola aérea, um “gol chorado” segundo Renato, mas que acontece em um momento no qual o Grêmio empurrava o Lanús para dentro do própria goleira, sem risco de contra-ataque.
A despeito da organização tática e do estilo convicto de futebol do maior clube de bairro do mundo, quem venceu por 1 a 0 foi o Grêmio. E, não fosse o erro de arbitragem que sonegou o pênalti em Jael, um dos heróis improváveis da Arena, ao lado de Padim Cícero, a vantagem seria ainda maior para quarta-feira. O certo é que Muricy tem razão.
O Lanús, time de torcida municipal, espécie de Chapecoense da Argentina, sem um torcedor sequer fora dos arredores de La Fortaleza, consegue chegar a uma final de Libertadores. Sand, o centroavante, jazia esquecido na Segunda Divisão argentina. Marcone, volante por onde a bola sempre passa, veio do Arsenal, de Sarandí. O capitão Velázquez tem mais de 10 anos no clube. Acosta nunca deu certo em lugar algum fora de Lanús. É uma lição de trabalho, continuidade e convicção, mesmo sem estrelas.
O Lanús vai perder o título para o Grêmio, mas o seu exemplo será um lustro para o tricampeonato.