Tenho cá para mim que a primeira vez em que ouvi falar de comer peixe cru foi numa antiga matéria do Fantástico sobre restaurantes japoneses. Estávamos nos anos 70, e eu assistia ao programa junto com meu avô. Na minha memória, nos entreolhamos, surpresos: então, havia gente que comia peixe cru...
Mais surpresos ficamos com a previsão feita pela reportagem, de que os restaurantes japoneses logo se espalhariam pelo país, mudando os hábitos alimentares brasileiros. Comer peixe “in natura” seria algo trivial no Brasil.
“Eu, não!”, pensei.
Eu, sim.
Passados alguns anos, tornei-me um apreciador da comida japonesa e até uso hashis, os pauzinhos que substituem os talheres, embora os considere tão pouco práticos.
Meu avô, porém, nunca comeu peixe cru, disso tenho certeza. Aquilo não fazia parte do mundo dele.
É o que me encanta: a coexistência de mundos paralelos. Eles existem ao mesmo tempo, mas em camadas diferentes, alguns subindo, outros descendo, entrando em processo de extinção.
Por exemplo: tempos atrás, não havia kiwi nem tomate cereja no mundo. Pelo menos não no meu. Mas o kiwi e o tomate cereja foram se impondo, sem nem merecer matéria no Fantástico, e agora eles estão aí – ninguém imagina o mundo sem eles.
Em contrapartida, outros protagonistas do mundo antigo desapareceram.
Antes, as ruas eram cheias de Fuscas. Os Fuscas se foram.
Antes, o tênis mais conhecido era o Conga. O Conga também se foi.
Antes, um dos personagens mais famosos de Patópolis era o Tio Patinhas. Hoje, as crianças não sabem quem é o pato mais rico da Terra.
O mundo muda na forma e no conteúdo. Porque a moral muda. Ações que eram aceitas antes não são mais agora. E vice-versa: comportamentos que antes eram interditados, hoje são triviais.
Uma história de que gosto muito é a do nascimento de Pablo Picasso. Seu tio, que era médico, fazia o parto. O pequeno Picasso veio à luz, mas não chorou. Seus pulmões estavam fechados. Para abri-los, o tio deu uma baforada do charuto que fumava na cara do menino. Funcionou. Picasso estava vivo.
Imagine hoje um médico fumando enquanto faz um parto!
O mundo muda.
No Brasil, mudanças ocorreram silenciosamente, nos últimos anos. Uma parte do país se transformava, enquanto a outra simplesmente não via. Estou falando da política. Uma massa de gente que nunca se interessou por política começou a formar conceitos nessa área, começou a tomar posição e a fazer diferença.
O primeiro sinal forte de que algo estava acontecendo foi emitido naquelas manifestações de junho, que neste mês completam exatos oito anos. Analistas, jornalistas, sociólogos e políticos ficaram perplexos com aquela onda de insatisfação que inundava as ruas. Ninguém entendia nada.
Foi dali que nasceu a possibilidade de um político como Bolsonaro se eleger presidente da República. Bolsonaro é uma consequência; ele não é causa de nada. Depois que ele sair de cena, o movimento da sociedade que o tornou viável continuará a existir. A forma de se fazer política no Brasil mudou para sempre. Agora, é preciso saber como lidar com esse novo mundo.