Sócrates era um chato. Isso ele próprio admitia, tanto que se definia como um “moscardo”, que nada mais é do que um moscão, e não na acepção brasileira, de pessoa distraída, meio abobada, e sim no conceito biológico, de ser uma mosca grande, daquelas que pousa no seu braço e você espanta e ela foge voando por dois metros e retorna e você espanta de novo e de novo ela faz que vai embora, mas volta, e outra vez você espanta e outra vez ela desvia do tapa, faz um voo irregular e retorna. Não tem bicho mais chato do que a mosca.
Sócrates era assim profissionalmente. Tratava-se de seu método filosófico. Ele saía pelas ruas de Atenas e, quando encontrava um conhecido, o detinha:
– Polidoro, my friend, vamos conversar. Tenho cá uma dúvida, diga-me: o que é a coragem?
Polidoro, pego de surpresa, balbuciava:
– Bem... coragem é não sentir medo.
– Hmmm – ponderava Sócrates. – E se um leão faminto vier em sua direção e você sentir medo, isso significa que você é covarde?
Polidoro imaginava a situação e admitia:
– Não, não. Seria normal que eu sentisse medo...
– Então, o que é coragem?
– Enfrentar o medo!
– Isso significa que um homem corajoso enfrentaria o leão faminto, mesmo se tivesse possibilidade de fuga?
– Não, não. Aí ele seria estúpido!
– Então, o que é coragem?
Sócrates ficava cercando o interlocutor com perguntas, desbastando o conceito que queria definir, até que, por meio dessa espécie de raciocínio induzido e conduzido, alcançava o mais próximo da verdade buscada.
Suponho que os atenienses, quando vissem o velho filósofo se aproximando, debandassem:
– Lá vem aquela mala do Sócrates!
Pensei em Sócrates não por causa de Sócrates, e sim por causa desse exemplo que gosto de usar para falar da forma como ele escrutinava o cérebro humano. Pois é interessante a confusão que as pessoas fazem entre coragem e ausência de medo. Não levar o medo em consideração, muitas vezes, é burrice. O medo é um sinal de alerta: cuidado, há um perigo ali adiante. Tome precauções!
Lembro agora de quando morava em Criciúma. Meu apartamento, que dividia com o Plisnou e a Nádia Couto, era o 1001, no décimo andar do edifício Visconde de Ouro Preto. Um dia, cheguei em casa e deparei com uma amiga nossa sentada no parapeito da janela. As pernas dela balançavam para o quarto em que estavam a Nádia e o Plisnou, e as costas davam para o oxigênio que pairava à altura do décimo andar, nada mais havendo entre elas e o térreo. A cena primeiro me deixou congelado. Depois, me aproximei com calma e disse com mais calma ainda, baixinho, para não assustar a moça:
– Desce daí agora, por favor...
Ela sorriu, possivelmente achando que era brincadeira minha. Repeti com gentil firmeza:
– Agora!
Ela desceu. Então, solei o ar que estava represado em meus pulmões e rosnei, entre dentes:
– Se tu quiser te matar, sobre pro décimo-primeiro, mas não vai fazer isso aqui de casa!
Ela rebateu:
– Eu não tenho medo.
E eu, ainda furioso:
– Não é caso de ter medo. É caso de ter inteligência.
Alguém pode achar que exagerei, mas penso que não. Aquela pequena imprudência juvenil poderia trazer graves consequências. Não sentir medo, portanto, pode ser bem ruim, em determinadas circunstâncias. Uma dessas é a nossa atual.
Negacionistas dizem que a imprensa e os médicos querem amedrontar a população. Estão certos! A população precisa sentir medo da covid, neste sombrio mês de março, que pode vir a ser o pior mês da nossa história. Porque só o medo fará com que as pessoas se previnam, só o medo fará com que tomem cuidado.
Sintam medo, irmãos brasileiros, sintam muito medo! Nada de se sentar na janela do décimo andar, nada de enfrentar o leão. Essa é a hora da prudência. Essa é a hora em que medo é sinônimo de inteligência.