Anestesia geral é uma delícia. Sério. Bem, óbvio que prefiro nunca mais ter de precisar de anestesia geral, mas que é bom, é. Você sabe que vai sentir dor e, antes que a desgranida sobrevenha, toma a anestesia, dorme e só acorda depois que passou. É maravilhoso.
Esse princípio bem que poderia ser aplicado em vários outros males da existência. A namorada brigou com você, arrumou outro, partiu seu coraçãozinho? Corra para o anestesista. Ele vai calcular o tempo que você levará no processo de tristeza-revolta-tristeza-aceitação, e você só acordará depois da aceitação, quando estiver pronto para um novo relacionamento.
Não seria lindo?
Eu, agora, duas semanas atrás, tive de tomar anestesia para ser submetido a uma operação na coluna. Então, lá estava eu, deitado na maca, na sala de cirurgia, e o anestesista, Márcio Bolsson de Miranda, começou a me explicar o que aconteceria. Ele foi falando e, enquanto falava, administrou a primeira droga. Já senti algum torpor e, ao erguer levemente a cabeça, vi todos aqueles médicos e enfermeiros ali, me olhando detrás dos seus aventais. O cirurgião, doutor Arthur Pereira Filho, o famoso “Arthur Pavilhão”, sorria. Os outros sorriam também. Bom sinal. Tive a impressão de que o meu médico, o André Fay, também estava lá, mas depois ele disse que foi ilusão causada pelo sedativo. Tento pensar naquele momento e divisar a realidade da imaginação, mas as lembranças se embaralham. Do que tenho certeza é que falamos sobre futebol. Arthur Pavilhão participa de um grupo de médicos com cem gremistas, mas o irmão dele, Nelson, que também estava lá, é colorado. Isso me levou a pensar: melhor não falar de Grêmio e Inter, para não ferir suscetibilidades de algum cara que vai me cortar com seu bisturi. Achei que foi um pensamento sensato, este.
Só que, em seguida, alguém fez uma observação sobre a situação do país, algo de política, e comecei a deitar falação contra o Bolsonaro. Enquanto falava, já com a voz engrouvinhada, ponderei para mim mesmo: “E se um desses médicos for bolsonarista? Não devia ter falado mal do Bolsonaro nesse momento, os bolsonaristas podem ser rancorosos. E se falasse mal do Lula, para contrabalancear?” Mas, nesse instante, dormi.
Ao acordar, deitado na cama, os médicos me rodeavam, sorridentes, e agora tenho certeza de que o André Fay estava lá. Uma das primeiras frases que eu disse, ainda com voz pastosa, foi:
— Cumprimentem o anestesista! Não estou sentindo dor! Viva o anestesista!
E depois emendei um monte de bobagens. Tenho convicção de que foram bobagens, mas não recordo de que tipo e hoje, ao tentar relembrá-las, me confundo. É que falo bobagens sobre muitas coisas, tudo é possível. De qualquer forma, adormeci outra vez e, quando despertei, foi para continuar a vida normal. Uma vida sem anestesia. Oh, como é dura a vida sem anestesia!