Eu fui a Bangu. Se você está em idade provecta, como eu, entenderá que fiz uma piadinha, pois saberá que, quando a pandorga da gente (ou pipa ou papagaio, ou mandioca ou aipim ou macaxeira) se perdia, ela ia “a Bangu”. A origem da expressão? Nem o Google sabe.
Mas fui MESMO a Bangu. Trabalhava na Livraria Sulina, no começo dos anos 1980, e me mandaram fazer cursos em editoras do Rio de Janeiro. Devia ter o quê?... uns 19 anos, e nunca viajara de avião.
Lembro que, no Salgado Filho, tentava manter um ar entre digno e enfarado de quem é íntimo do mundo aeroviário. Na época, as pessoas vestiam as melhores roupas para passear no aeroporto. Quando entrei na espaçosa aeronave da Varig, fiquei observando o que os outros passageiros faziam, para fazer igual.
Não era minha primeira no Rio. Fora no Carnaval anterior, de ônibus, 24 horas de estrada – eu era jovem...
Mas agora era diferente. Agora empreendia o que se podia chamar de “viagem de negócios”. Coisa importante. E, como disse, um dos cursos acontecia em Bangu, não recordo qual editora. O que recordo é da vontade que sentia de conhecer o estádio do Bangu, o “Moça Bonita”.
Que nome interessante de estádio. Melhor que esse só o “Brinco de Ouro da Princesa”, do Guarani de Campinas. Mas um brinco de ouro é um adereço e uma moça bonita é uma pessoa. Logo, gostaria de pelo menos ver uma foto dessa moça. Devia ser morena, só podia ser morena, uma dessas flores frescas do subúrbio. Não frequentava a praia, porque morava na Zona Oeste, e naquele tempo as pessoas não se entregavam, como hoje, às lides da areia. Talvez trabalhasse na fábrica de tecidos que tornou o bairro famoso, talvez passasse ondulando por entre os operários e eles suspirassem ao vê-la, repetindo uns para os outros:
— Olha a moça bonita... a moça bonita...
E assim ficou sendo “A” moça bonita.
O time do Bangu, dono do estádio, também conta com minha simpatia, por ter sido um dos primeiros do Brasil a aceitar negros, junto com o Vasco.
Na época em que visitei o bairro, o Bangu tinha um time que não se achicava nem para o Flamengo de Zico. Na lateral-esquerda jogava Marco Antônio, que havia perdido a posição para Everaldo, do Grêmio, na Copa de 70, e de beque militava ninguém senão o Moisés “Paulada”, autor da sábia frase “zagueiro que se preza não ganha o Belford Duarte”.
O Bangu podia contratar jogadores desse jaez porque seu patrono era o bicheiro Castor de Andrade.
Era onde queria chegar.
Assisti ao documentário Doutor Castor, da Globo, e é uma preciosidade. O Brasil está ali, e falo do Brasil de hoje, ano 21 do século 21.
Quero escrever sobre dois ou três pontos do documentário, porque mostram a vida como ela é, nessa terra em que tem palmeiras onde canta o sabiá. Por enquanto, deixo com você só um depoimento que, de tão escandalosamente sincero, chega a ser anedótico. É o do ex-juiz de futebol “Cabelada”. Com muita naturalidade, ele admitiu que a influência que sofria de Castor era bem mais material do que psicológica. E contou que, um dia, irritou-se com a “cera” que o goleiro do Bangu fazia, e decidiu lhe mostrar o cartão amarelo. Tirou o cartão do bolso, ia apresentá-lo, quando Castor gritou do reservado:
— Esse, não! Esse tem dois!
A história da sua vida foi construída por corrupção, violência e até assassinato. O que não diminuiu o amor que parte da população carioca sentia por ele
Então, o Cabelada girou em direção ao lateral-esquerdo. Mas Castor se apressou:
— Esse também tem dois!
Finalmente, o árbitro virou-se para o outro lado, para o lateral-direito, e deu o cartão, reclamando:
— Pô, aqui todo mundo tem cartão!
Mas isso não passa de folclore diante de outros atos patrocinados por Castor. A história da sua vida foi construída por corrupção, violência e até assassinato. O que não diminuiu o amor que parte da população carioca sentia por ele, algo que abordarei oportunamente.
Para se ter uma ideia: no fim dos anos 1990, o desfile das escolas de samba parou, as arquibancadas emudeceram e as baterias se calaram para fazer um minuto de silêncio pela morte de Castor. O homem era um bandido, e foi pranteado pela multidão. Veja o documentário. Será instrutivo conhecer melhor esse personagem típico do Brasil. Sobretudo agora, nesse estranho Carnaval.