O médico J.J. Camargo conta que, às vezes, passa oito horas debruçado sobre um paciente, na sala de cirurgia. Mantém-se, durante aquele período, com a mão firme e o cérebro atento, concentrado ao extremo, empregando os conhecimentos que adquiriu na academia, em congressos e seminários, e nas décadas de experiência na profissão, sabedor de que um movimento hesitante corresponde ao desarmador de explosivos cortar o fio de cor errada.
É muita responsabilidade.
Então, ele termina trabalho, suspira, lava-se e vai ter com a família do operado.
— Foi tudo bem!— comunica, exultante.
E os parentes do paciente exclamam:
— Graças a Deus!
Camargo, nesse momento, suspira outra vez. Tudo bem, Deus até pode ter ajudado, mas e o trabalho DELE, cirurgião?
Essa anedota Camargo a contou numa entrevista que deu ao Potter, publicada em podcast. O tema era uma questão simples de ser respondida: “Deus existe?”. É ainda o podcast de maior sucesso do Potter, com mais de 720 mil acessos, e ele é um profícuo produtor de podcasts, um dos pioneiros do Brasil no formato.
Ou seja: Deus ainda é um sucesso. O que não deixa de ser uma surpresa, porque hoje está na moda ser ateu, pelo menos no meio intelectual. Você dizer que acredita em Deus é visto como algo meio brega, uma espécie de superstição que não se sustenta nas profundas reflexões do intelecto humano.
Bem. Vou confessar algo só para você, meu amigo: eu acredito. Não no Deus colérico do Velho Testamento, o Deus vingativo, que anuncia:
“Eu sou um Deus ciumento”.
Não.
Tampouco no Deus mágico, que desvia a bola do gol do seu time no último átimo ou que troca um sacrifício por uma graça.
Nada disso. O meu Deus é mais spinoziano, e estou falando do filósofo Baruch Spinoza, não do técnico Valdir. O Deus de Spinoza é delicado e sutil, imanente e, ao mesmo tempo, transcendente. Quer dizer: está em tudo, como ensinava Heráclito há 25 séculos.
Heráclito, que era chamado de “O Obscuro”, por ser de difícil compreensão, foi quem disse que é impossível a um homem entrar no mesmo rio duas vezes, porque, na segunda entrada, ele e o rio já não serão como eram. Tudo muda, enfatizava Heráclito, e tudo faz parte do todo. Tudo é uma coisa só em constante e inexorável transformação.
Se você pensa assim, você compreende que, se fizer mal a uma parte do todo, estará fazendo mal a si próprio. É uma automutilação. Nada a ver com a tal lei de retribuição do universo, essa bobagem. O universo não castiga nem recompensa. Mas todos os atos humanos têm consequências.
É aí que se reúnem todos, Heráclito, Spinoza, Kant e os ateus que acreditam em horóscopo ou em “energias” boas ou más. E eu, inclusive, por que não? Afinal, também sou filho de Deus.