A Marcinha tem uma tia chamada Percília, que é mesmo ótimo nome de tia. Pois deu-se que, tempos atrás, a Tia Percília estava sacando dinheiro de um caixa eletrônico, numa daquelas salas envidraçadas, e um ladrão entrou. O cara chegou sem cerimônia, como soem chegar os ladrões, anunciando o assalto e ordenando com agressividade:
“Passa a grana! Passa a grana!”
Os outros três ou quatro clientes que estavam no lugar se alvoroçaram e, trêmulos, começaram a botar maços de dinheiro nas mãos do bandido, enquanto a Tia Percília, rapidamente, girou nos calcanhares, jogou uma mão para o alto e avisou:
“Eu, fora!”
E saiu sem mais explicações, deixando assaltante e assaltados perplexos na caixa de vidro.
Penso que a Tia Percília fez muito bem. Sempre quis ter essa atitude em relação a certas exigências da vida, e só não fiz assim antes por ter me faltado a ousadia que sobrou a ela. Mas é como vou me comportar, a partir de agora. Não venham tentar me envolver em coisas das quais não quero participar. Não vou, e pronto. Eu, fora!
Lembro, por exemplo, de quando fui fazer minha primeira carteira de identidade. Fiquei horas sentado numa antessala de alguma repartição, acho que era uma delegacia. Horas! Recordo de ter cogitado: “Por que estou sentado aqui? Por que tenho de fazer carteira de identidade? Por que preciso me identificar? Eu sou eu, é isso que importa. Se as pessoas perguntarem, responderei se quiser. Se não quiser, não me identifico. Por que elas têm de saber quem sou? Só porque um sujeito trabalha na polícia ele acha que sou obrigado a dizer meu nome para ele?”
Aquelas considerações me encheram de revolta, mas depois um funcionário me chamou e botei minha impressão digital naquele papel e assinei e saí humilhado.
A mesma coisa o passaporte. A existência do passaporte é um absurdo filosófico. Por que um ser humano não pode se deslocar de um lugar para outro livremente? Propriedade privada, tudo bem, posso admitir, mas como é que podem tornar um país inteiro propriedade privada? Não existem fronteiras para os bichos, o sabiá que canta no meu quintal pode voar para o Uruguai ou para os Estados Unidos ou para a Coreia do Norte, se tiver fôlego para isso. Cachorros, esquilos e elefantes não são detidos em aduanas. Não é possível alguém achar que tem direito de me impedir de caminhar por uma rua, qualquer rua, de qualquer cidade do mundo.
Então, eu deveria ter dito, lá atrás: “Carteira de identidade? Eu, fora!” Passaporte? Eu, fora!” CPF, carteira de trabalho, carteira de motorista? Estou fora. Mas a mais escandalosa de todas as exigências é a primeira delas, a certidão de nascimento. Eles querem um documento que certifique que nasci! Se estou bem na frente deles, como eu poderia não ter nascido? Inacreditável a pretensão dessa gente!
Por que um homem não pode simplesmente fazer o que bem entender, em paz, se não estiver incomodando ninguém? Por quê?
Mas a questão é que nunca disse “eu, fora”. Fui aceitando, me submetendo, me deixando moldar pela forma de viver que eles impõem. Mas acabou. Não me pegam mais. Exercerei minha liberdade com plenitude, como Tia Percília. Não preencherei formulários, não aceitarei condições, não usarei hashtags, não me registrarei em lugar algum. Cerimônias e seminários? Pagamento de contas? Filas? Tratamento de canal? Doenças e envelhecimento? E agora, a última exigência coletiva, a covid19? Não contem comigo. Eu, fora!