Ela devia ter... o quê? Uns 15 anos de idade. Antigamente a chamariam de “menina-moça”. Estava sentada na ponta de um banco e lançava um olhar comprido, rente às águas do Guaíba, em direção ao horizonte. Fiquei pensando que, se aquele olhar tivesse autonomia de voo, atravessaria todo o Rio Grande, entraria direto na Argentina, passaria pela Mesopotâmia formada entre os rios Uruguai e Paraná, cruzaria o Chile e mergulharia, aliviado, nas águas frias do Pacífico.
No mesmo banco, na outra ponta, sentava-se um senhor de cabeça branca que, no mínimo, tinha os seus setenta e tantos anos, não duvido que oitenta e poucos. Ele também esticava o olhar rumo ao Oeste, e foi o que me chamou a atenção: pareciam tão diferentes, mas seus olhares eram iguais.
Não deviam ser amigos, parentes ou vizinhos. Não se falavam, nem sequer se fitavam. Havia uma distância dura entre eles. Pessoas que se dão não ficam cada uma numa beira de um banco. É provável até que não tomassem conhecimento um do outro, tão concentrados estavam em seus próprios pensamentos.
O homem lembrou-se de uma das músicas mais lindas da MPB, uma obra-prima do Paulinho da Viola, em que ele canta:
“Um olhar espiando o vazio é lembrança
Um desejo trazido no vento é saudade”.
O olhar dele era composto por essas duas matérias-primas, a lembrança e a saudade. Em quem estaria pensando, aquele senhor vetusto? Em que época da sua longa vida a sua mente agora estava?
Uma vez... Nunca contei isso, contarei agora: uma vez, estava sentado à mesa de um restaurante, almoçando com um colega bem mais velho do que eu. Era o restaurante de um país europeu, estávamos os dois trabalhando em uma cobertura jornalística. Então, começou a tocar uma música no sistema de som do restaurante. Esse meu colega parou de falar, ergueu um pouco a cabeça e ficou ouvindo. Percebi que a música o tocara por algum motivo. Mantive-me em silêncio. Aí, ele balbuciou:
“Essa música... Tocava quando eu tinha 16 anos... Eu tinha 16 anos...”
E começou a chorar. Ali, na minha frente, em um restaurante europeu, ele começou a chorar, e eu não soube o que dizer.
Agora, vendo aquele senhor no banco, tive a certeza de que ele se recordava de um pedaço da sua juventude, quando era docemente irresponsável, quando era alegremente pobre, quando o mundo ainda estava para ser conquistado.
Ao lado dele, a menina também sonhava. Mas não com o que já foi, e sim com o que está por vir. Ela tinha 15 anos e decerto sentia vontade de mudar tudo na vida, de ir para outra cidade, de conhecer pessoas novas, de fazer diferente do que fez a sua mãe, de se transformar em uma mulher dona de seu destino. Talvez estivesse pensando em algum garotão da escola ou talvez já começasse a compreender que os homens são bobos, são eternamente infantis, enquanto as mulheres como ela, mesmo que ainda meninas, sabem muito bem que o tempo passa.
O tempo passa. Foi o que vi, naquele banco, em frente ao rio. O tempo passa e você está sempre sonhando. A diferença, se você é jovem, como a menina, ou velho, como o senhor de cabelos brancos, a diferença é a conjugação. Se você é jovem, sonha no futuro. Se é velho, sonha no passado. Como diria Paulinho, em sua canção imortal:
“A vida da gente é mistério
A estrada do tempo é segredo
O sonho perdido é espelho
O alento de tudo é canção”.