“Mauá – Empresário do Império” é um livro que Jorge Caldeira escreveu no distante século passado, e eu, numa de minhas inúmeras falhas, ainda não havia lido. Deste erro me redimi há pouco, e lamentei não tê-lo feito antes. Já conhecia a história de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, mas Caldeira conseguiu contextualizá-la de uma forma que tornou seu livro importante para quem quer entender o Brasil. Um pouco da alma do país está descrito naquelas páginas.
Embalado pelo livro, escrevi sobre a infância de Mauá, dias atrás. Ele foi um fenômeno desde pequeno. Começou a trabalhar aos 9 anos de idade e antes dos 40 já era o homem mais rico da América do Sul. A primeira ferrovia, o primeiro estaleiro, a primeira empresa de iluminação pública, todos esses pioneirismos foram obra dele, além de outros tantos. Mauá inovou em diversos setores. Na época, a economia do país se fundamentava no tráfico de escravos. Mauá proclamava que se tratava de grande erro estratégico. Ele era abolicionista convicto não só por razões humanitárias: dizia que o Brasil ganharia muito mais, se libertasse os escravos e criasse um mercado consumidor interno.
Durante toda a sua vida, Mauá trabalhou para desenvolver o Brasil, mas acabou derrotado pelo próprio governo de Dom Pedro II, que o sabotou incansavelmente, até empurrá-lo para a falência. Os políticos odiavam Mauá, porque ele tentava romper a velha ordem. Há um trecho do livro que resume algumas das dificuldades enfrentadas por ele e expõe um pedaço da alma do Brasil. É uma parte que descreve os esforços do engenheiro inglês William Bagge, que havia sido contratado por Mauá para abrir a primeira ferrovia brasileira. Caldeira conta o seguinte:
“Apesar de todo o seu conhecimento, o inglês não demorou muito para descobrir que teria de jogar fora muitos anos de seus estudos se quisesse mesmo chegar ao fim dos trabalhos. Tudo naquela estranha natureza tropical parecia ter sido criado para demolir suas boas ideias. Ele descobria a cada metro que as coisas no Brasil não funcionavam exatamente do modo que aprendera nos canteiros de obras em seu país. O corte aparentemente simples do Morro do Camarão transformou-se num tormento: cada vez que os operários, seguindo suas cuidadosas instruções, terminavam de remover com carrinhos de mão centenas de metros cúbicos de terra, e a obra parecia acabada, as torrentes de verão se encarregavam de produzir um deslizamento e mostrar que os cálculos sobre a estabilidade do talude estavam errados. Um pouco mais à frente, os mosquitos de um pântano espalhavam febre entre os operários que lutavam para aterrá-lo, com lastro trazido em lombo de burros. As obras da Estação da Prainha emperravam. Ali o inimigo tropical era outro: as intermináveis delongas das repartições públicas para regularizar o terreno, aprovar as plantas e as obras, que provocavam acessos de irritação no paciente inglês. A todo momento faltavam trabalhadores especializados, o que o obrigava a gastar parte do seu tempo em aulas para os broncos que conseguia arregimentar. Havia problemas até com os materiais de construção mais comuns”.
Há, no padecimento desse engenheiro, um naco da natureza do Brasil. A natureza física, sim, mas também espiritual. O Brasil, em tudo, é tropical, e os trópicos parecem ansiar para que as coisas permaneçam como estão. Por mais que o homem tente modificar o ambiente, forças flexíveis e resistentes, úmidas e mormacentas, langorosas e envolventes, essas forças se recuperam, retomam o seu lugar, se assentam outra vez e nada se transforma. Na política, na economia, nos costumes, o que sempre existiu vai continuar existindo. O que era, está. Parado. Mole. Preguiçosamente imperturbável. O sistema é invencível, no Brasil. Está na alma do país. Na alma dos trópicos. Tristes trópicos.