Muitos, agora, andam falando da Revolta da Vacina. Aplaudo. É bom que os brasileiros, vez em quando, descubram sua própria história.
A Revolta da Vacina foi um dos poucos movimentos de origem realmente popular, no Brasil. Claro que também havia ingredientes políticos e econômicos envolvidos, sempre há. Mas a revolta não foi concebida por líderes orgânicos, ela germinou no solo do povo.
Seis anos depois explodiria outra revolta genuinamente popular, a Revolta da Chibata. Seu líder, o gaúcho João Cândido, o “Almirante Negro”, era filho de ex-escravos, não tinha nenhuma aspiração política.
A maioria das outras rebeliões brasileiras aconteceu de cima para baixo, motivada por interesses de nacos da elite que lutavam contra outros nacos da elite. Como as que nasceram do tenentismo: os 18 do Forte, a Coluna Prestes, a Revolução de 30 e tantas mais.
A campanha das Diretas Já, em 1984, comoveu a população, mas não teve origem popular. Popular, quase que espontâneo, foi o levante dos Caras-Pintadas contra Collor e, mais do que todos, o Junho de 2013. Aqueles protestos foram tão intuitivos que ninguém ainda os compreendeu. Foi deles que surgiu a nova direita do Brasil e a furiosa ebulição que derrubou Dilma, tendo como ápice um domingo de março de 2016 em que 6 milhões de pessoas foram às ruas contra o governo, talvez a maior manifestação popular da história do Ocidente.
Para que a alma do povo se incendeie, não adianta atirar nela uma fagulha ou um fósforo aceso. A alma precisa estar em condições de combustão. No caso da Revolta da Vacina, havia ambos os elementos. O povo estava irritado e a oposição e a imprensa criticavam acidamente a vacina obrigatória contra a varíola. Ruy Barbosa, ninguém menos do que o tataravô de Marina, discursou da tribuna do Senado:
“A lei da vacina obrigatória é uma lei morta! Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme! Logo, não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-me obstinadamente a me envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus, em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte!”
Ruy Barbosa, hoje sabemos, estava errado. Mas também estava um pouco, só um pouco, certo, porque as brigadas sanitárias de Oswaldo Cruz, acompanhadas de patrulhas policiais, invadiam as casas, imobilizavam os moradores e os vacinavam à força. Uma violência.
Hoje, quando as pessoas falam em vacina obrigatória contra a covid19, há quem evoque exatamente essa imagem de 1904: policiais entrando nas casas, pegando homens, mulheres e crianças por braços e pernas e lhes “transpondo a epiderme”, como diria Ruy Barbosa, com a agulha gotejante da vacina.
Isso é uma tolice.
O fato de a vacina ser “obrigatória” não significa que alguma autoridade o fará tomá-la contra a sua vontade. Por exemplo: o voto, no Brasil, é obrigatório. Mas, se você não quiser votar, ninguém o arrastará até a seção e o colocará “sob vara” na “cabine indevassável”. Você apenas sofrerá algumas sanções, como não poder tirar o passaporte ou não poder se inscrever em concurso público.
Nos Estados Unidos, os campeões da democracia liberal, há vários Estados em que vacinas são obrigatórias para adultos e crianças. E aqui, no Brasil, se você quiser viajar para alguns países, terá de se vacinar contra a febre amarela.
Essa deverá ser a extensão da obrigatoriedade da vacina contra a covid, se obrigatória for. Até acho que deveria ser, mas suponho que não será. Porque não precisa. Os brasileiros correrão para se imunizar por vontade própria. E é um desperdício querer exigir o que se tem de graça.