Ainda existe pão semolina? No meio da tarde, minha mãe mandava:
“David, vai lá na tendinha e traz meio quilo de pão semolina e um litro de leite”.
A tendinha ficava numa espécie de rua de areão que se esticava entre dois blocos de edifícios, o da Coorigha e o da Guasepe, em frente aos prédios amarelos do IAPI. A gente chamava aquele lugar, obviamente, de Rua da Tendinha. Gostávamos de jogar bola lá. Então, quando ia buscar pão e leite, se tinha algum joguinho eu sempre parava para dar uma olhada e, de repente, arrumava um furo e entrava no jogo e me distraía e deixava o pão e o leite ao lado da goleirinha de chinelo de dedo e a minha mãe, em casa, sapateava de raiva.
Mas é claro que, depois de aplicar alguns dos meus desconcertantes dribles da levantadinha, acabava voltando para casa com o pão e o leite. Aí a mãe me xingava e ia fazer o café da tarde. Cortava o pão em fatias da espessura de um dedo polegar, passava manteiga e chimia e botava na minha frente e na frente dos meus irmãos, sobre pires brancos. Ao lado, o café com leite fumegante.
Aí é que está. Desisti do café com leite. Sabe por quê? Porque não consigo mais estabelecer o equilíbrio, aquele tom exato de marrom que a minha mãe alcançava ao derramar café na xícara de leite. Eu adoçava com uma colher e meia de açúcar, precisamente uma colher e meia e... ah... o café com leite perfeito! Agora, quando vou tomar café com leite acontece como na política brasileira, ou fica muito claro ou muito escuro. Então, aborrecido com os extremos, desisti do café com leite e da política brasileira.
Mas o que realmente importa, filosoficamente falando, é o pão semolina de meio quilo. Era um pão grande, de três palmos e meio de comprimento, alimentava a família toda por um dia inteiro. E agora, o que é feito do pão semolina de meio quilo? Ninguém sabe, ninguém viu. Agora, o que vige é o cacetinho, como chamamos no Rio Grande amado, um pãozinho pequeno, do tamanho do punho do Paulo Miranda, do Grêmio, que atende a um único comensal.
Mas não é só isso. Não. Temos também a garrafinha de cerveja long neck, enquanto antes o que havia era o casco de cerveja de 660 ml, uma cerveja que o garçom botava na mesa com orgulho e certo estrondo e você partilhava sorrindo com os amigos. E quem não bebia cerveja, quem preferia Minuano Limão, o que tinha? Tinha o tamanho família, com um litro e pouco, que servia a todas as crianças da casa. E não fica por aí! Ah, não. Porque o sorvete mais excitante que havia era o tijolo da Kibon, um sorvete que era, bem, um tijolo. Quando a mãe comprava um tijolo, meu Deus, que luxo. Uma época eles lançaram o Napolitano, com não um, nem dois, mas TRÊS sabores. Quanta fartura. Quanta alegria.
Você entende o que quero dizer? Quero dizer que nós compartilhávamos o alimento e a bebida. As porções generosas vinham à mesa e as dividíamos entre nós. O que se tornava parte de cada um de nós tornava-se também parte dos outros que estavam à mesa conosco. Nós comungávamos a cada almoço, a cada jantar, a cada café da tarde. Hoje, não. Hoje é cada qual com seu pãozinho, com sua cervejinha, com seu sorvetinho. Individualistas! Foi no que nos transformamos. Não é à toa que não existe mais união no Brasil. Nos esquecemos do grande ensinamento da civilização cristã. Nos esquecemos que temos de repartir o pão.