Iracema é nome antigo. Toda essa história, na verdade, parece antiga, com exceção de um apetrecho muito atual: a máscara anticorona. Ele usava máscara, esse homem que chamava por Iracema. Eu passava pela rua, a caminho de um compromisso que nem a peste poderia adiar, e o vi. Estava parado diante de um prédio de apartamentos, olhava para cima, para uma janela fechada. Gritava:
— Iracema!
O grito era mais do que urgente: era desesperado. Ele precisava falar com Iracema. Lembrei-me da virgem dos lábios de mel, de José de Alencar. Um clássico da literatura brasileira, elogiado até por Machado de Assis, que escreveu:
"O livro do senhor José de Alencar é um poema em prosa".
Eram tempos de delicadeza, esses em que José de Alencar contou as aventuras da índia Iracema e seu amor branco, o português Martim. Repare na sutileza com que ele descreve a primeira noite de amor de Iracema:
"As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa. Tupã já não tinha a sua virgem na terra dos tabajaras".
É o próprio recato.
Um dia ainda vou escrever um livro imaginando o enredo de um autor sendo desenvolvido por outro. Por exemplo: como Bukowski descreveria o defloramento de Iracema, tornada então ex-virgem dos lábios de mel?
Será que a Iracema por quem chamava o homem de máscara tinha os lábios de mel? Decerto que sim, porque a voz dele agora veio quase que soluçada:
— Iracema!
Nenhum homem faria tal demonstração de amor em público se a mulher não tivesse pelo menos um pouco de doçura nos lábios. Ah, Iracema, Iracema... Como será que ela era?
Ele era jovem, então ela devia ser jovem também. Uma moça de vinte e poucos anos que se chama Iracema na certa é especial, fruto de pais lidos, conhecedores da obra de José de Alencar.
Claro que a incentivaram a se transformar em uma leitora tão ávida quanto eles, Iracema deve beber diariamente da boa literatura e, por isso, é uma mulher de personalidade. Porque lhe digo uma coisa: consigo diferenciar uma pessoa que lê livros de uma que não lê, e consigo desde os primeiros minutos de conversa. Desde o primeiro olhar, inclusive. Uma pessoa que lê pisa na terra com mais segurança e encara o interlocutor com mais firmeza.
Iracema, portanto, deve ser uma mulher confiante, até porque, tenho certeza, recebeu amor dos pais. Pais que põem nos filhos nomes de personagens de romance se importam com eles — o nome, afinal, foi pensado, foi escolhido com afeto, para que signifique algo. E filhos que receberam amor têm elevada autoestima. Logo, a Iracema que agora o homem chamava pela terceira vez é segura de si, altiva e independente. Que mulher! E provavelmente tem a pele morena, talvez jambo, porque, oras, emula a índia tabajara de Alencar.
Que mulher! Que mulher! Não admira que o mascarado seja assim tão louco por ela, a ponto de se debulhar em angústia na calçada, sob a vista da vizinhança.
— Iracema! — ele continuava chamando, enquanto eu me afastava. — Iracema!
Senti vontade de me deter e ficar eu também à espera de Iracema, para vê-la, enfim, e descobrir se iria se comover com a angústia do homem de máscara. Mas, não. Não parei. Tive pudor de me imiscuir naquela intimidade exposta do casal. Fui andando, andando, meio que querendo olhar para trás. Não podia mais vê-lo, e ainda ouvia sua voz. Suspirei de dó do pobre coitado. E disse baixinho, como em oração:
— Abre a janela, Iracema. Abre a janela...