Encomendei o jantar por telentrega. Terá de ser assim, nestes dias infecciosos. Nada de convescotes, nada de confraternizações, nada de chopes cremosos, a não ser que se instale um barril em casa, o que não é má ideia.
Mas, como ia dizendo, encomendei o jantar e o entregador chegou com a caixa de papelão num braço e a maquininha de cartão de crédito no outro. Enquanto me aproximava dele, com meu cartão em punho, pensei: esse cara passa o dia inteiro oferecendo essa maquininha para outras pessoas digitarem suas senhas. São dezenas de dedos indicadores por dia, centenas por semana, talvez milhares por mês. A chance de um desses dedos estar contaminado é grande, é imensa, e eu, aqui, estou prestes a pressionar aqueles teclados imundos com meu asséptico indicador, que acabou de ser higienizado com álcool gel.
O entregador sorria, quando parei diante dele. Era um tipo simpático. Sorri de volta, mas com a apreensão me vergando os cantos da boca. Olhei de novo para a maquininha. Os teclados estavam gastos de tanto uso. Nos espaços entre eles, podia ver o que a minha avó chamaria, com desprezo, de "cisco". E, em meio aos números brancos, quase que podia enxergar as bolinhas do corona umas sobre as outras, pequenas almôndegas assassinas esperando por mais um hospedeiro.
Trocamos boas-noites, eu olhando sempre para a maquininha. Então, ele, num movimento sem hesitação, tomou o meu cartão de crédito e, rápido como uma cascavel, o introduziu na maquininha. Exclamei baixinho: "Oh, Jesus!". Ele digitou o valor e estendeu o braço em minha direção, com a maquininha entre os dedos. Olhei dela para ele e dele para ela. Era chegado o momento da decisão. O que deveria fazer? Eu não tinha dinheiro em espécie para pagar pela comida. Além disso, mesmo que tivesse, meu cartão já estava DENTRO daquela maldita colônia de vírus e o entregador o havia segurado com os mesmos dedos que o dia todo pressionavam o teclado do horror. Não havia saída. Não agora. Se eu fosse americano, teria vindo de luvas de borracha. Os americanos são assim, segurança cem por cento. Não os censuro, ainda que às vezes eles exagerem. Mas é melhor exagerar do que correr riscos, não é? Decidi que compraria luvas de borracha e que iria vesti-las na próxima encomenda. Agora, porém, não havia saída. Teria de pressionar pelo menos seis dos teclados do medo.
Respirei fundo.
Concentrei-me.
E fui. Fui mesmo.
Digitei.
O entregador puxou a maquininha. Conferiu.
- Acho que o senhor digitou a senha errada - disse, e esticou a maquininha outra vez para mim.
Não! NÃO!
Digitei de novo. Desta vez, corretamente. Ele me entregou a caixa de papelão e o cartão, nos despedimos e rumei direto para um grande tubo de álcool gel que tem lá na cozinha. A comida estava boa, mas não esqueci da maquininha. Nenhum jantar é perfeito quando vivemos dias infecciosos. Não sei como García Márquez conseguiu amar nos tempos do cólera.