
Eu sabia que aquela seria minha última chance. Quando cheguei aos Estados Unidos, em junho de 2014, já havia experimentado todos os remédios disponíveis para tratar o câncer de rim que descobrira pouco mais de um ano antes, sem bom sucesso. Os remédios funcionavam durante um mês, no máximo dois, e a doença voltava com olhos de fogo e caninos à mostra. Amigos contavam que alguns médicos calculavam que eu não veria 2015 terminar.
Então, quando sentei diante de Patrick Ott, médico alemão responsável pelos estudos do Dana-Farber Hospital, de Boston, tinha consciência de que o experimento a que me candidatava era a única bala que me restava. Eu não podia errar. O tigre estava cada vez mais perto, cada vez mais perto.
Aquela temporada americana tinha me transformado em uma pessoa diferente. Pessoa de quem, aliás, gostava mais. Não que a essência de quem eu era tivesse mudado. Ao contrário: é que eu descobrira qual era essa essência. Há quem viva uma vida inteira sem descobrir quem de fato é.”
Muito profissional, muito objetivo, o doutor Ott explicava como seria o tratamento, enquanto eu e o médico brasileiro André Fay, que trabalhava no Dana-Farber, ouvíamos com atenção máxima. Ao cabo da explanação, ele acrescentou:
— Pelos nossos testes até aqui, sabemos que essa droga é efetiva em 28% dos casos. É essa a sua chance.
Sorri:
— Não. Não é essa a minha chance.
Ele ergueu as sobrancelhas:
— Por que não?
— Porque, se eu estiver dentro dos 28%, tenho 100% de chances.
Ele riu do meu raciocínio.
O estudo em que entrei era de imunoterapia, novidade estimulante no tratamento de diversos tipos de câncer, considerada a arma do futuro para combater a doença. O problema é que nenhuma droga do gênero ainda havia sido aprovada pelo FDA, a Anvisa americana. Assim, para receber o remédio, tinha de participar dos testes e ser uma espécie de cobaia dos cientistas.
Observando a situação sob o ponto de vista desse termo, “cobaia”, parece algo negativo, a imagem que se tem é de que o sujeito vai se transformar em um rato de laboratório e ser usado a bel prazer de cientistas insensíveis. Não é assim. Os remédios que entram em fase de testes em seres humanos já foram aprovados em fases anteriores e obtiveram respostas positivas. Se vencem todas as etapas e vão para o mercado, essas drogas custam pequenas fortunas, mas, nos estudos, são gratuitas. Por isso, gente do mundo inteiro se candidata para participar dos testes. Eu tentara ingressar em um, meses antes, e falhara. O laboratório fez uma randomização por computador para escolher quem tomaria o remédio e o meu nome não foi sorteado. Mas agora, na segunda tentativa, eu conseguira, o que me dava a tranquilidade de estar fazendo o melhor que podia. Se houvesse uma saída, aquele era o caminho que me levaria a ela.
Logo que recebi a primeira infusão, minhas dores começaram a diminuir. Até aquele momento, vários pontos do corpo me atormentavam, em especial um na virilha esquerda que transformava cada pequena caminhada numa façanha. No café da manhã, sentava-me o mais perto possível do bufê do Holliday Inn Hotel, a fim de sofrer menos. Cinco ou seis passos eram o suficiente para que o suor passasse a escorrer-me testa abaixo e me fizesse pensar: “Será que nunca mais vou conseguir caminhar direito, logo eu, que adoro caminhar?” O doutor André tentava me tranquilizar:
— Depois de tomar a segunda dose, tudo vai melhorar.
Melhorou.
Quarenta dias depois daquela consulta com o doutor Ott, a Marcinha e o Bernardo vieram do Brasil para se instalar na nossa nova casa. Quando fui recebê-los, no Logan Airport, já caminhava normalmente, sem dores. Dois ou três dias mais tarde, meu celular chamou minutos depois das seis da manhã. Acordei meio assustado. Do outro lado da linha, duas vozes excitadas se sobrepunham: a do André Fay e a de outro médico que me tratava, o libanês Toni Choueiri, especialista em câncer de rim. Eles gritavam de entusiasmo.
— Os tumores diminuíram em 40 por cento! — anunciou o André.
— Congratulations! — acrescentou o doutor Choueiri.
Ainda com a cabeça no travesseiro, deitado na cama, olhando para o teto, sorri. Eu estava dentro dos 28%.
Somos brasileiros irreversíveis

Estava tudo planejado: o estudo terminaria em um ano. Depois deste prazo, retornaríamos ao Brasil. Mas quem disse que a vida concorda com os nossos planos?
Em maio de 2015, o doutor Ott me chamou e avisou:
— Hoje vai ser sua última infusão. A partir de agora, controlaremos a situação por meio de exames.
Fiquei um pouco apreensivo:
— Por que interromper, se está dando tão certo?
— São as regras do estudo. A previsão é de fornecimento da droga por um ano e, depois disso, avaliar o que vai acontecer.
Estremeci de leve. Quando falei que estava “dando tão certo”, não exagerei. Os tumores haviam diminuído até se tornarem pequenas manchas que apareciam nas tomografias, mas que os médicos não sabiam ao certo se eram sinais da doença controlada ou apenas cicatrizes. Em todo caso, estava me sentindo bem e aquela temporada americana tinha me transformado em uma pessoa diferente. Pessoa de quem, aliás, gostava mais. Não que a essência de quem eu era tivesse mudado. Ao contrário: é que eu descobrira qual era essa essência. De certa forma, havia me tornado “mais eu”. Considero isso uma grande conquista. Há quem viva uma vida inteira sem descobrir quem de fato é.
O ambiente de Brookline, onde vivia, ajudou nessa descoberta, no combate à doença e na nova união que tornou muito mais sólida a minha família. Brookline é simples e sofisticada ao mesmo tempo. É adesivada a Boston, você chega até a requintada Back Bay em 20 minutos de caminhada. Tem pouco mais de 50 mil habitantes, bons restaurantes e uma rede escolar famosa como das melhores dos Estados Unidos. É cercada por uma rede de parques chamada emerald necklace, ou “colar de esmeraldas”. Você desliza pelas ruas fartamente arborizadas e ouve o canto dos passarinhos. Seus moradores, na sua maioria famílias de israelenses e de americanos descendentes dos pioneiros do May Flower, repetem sempre que “Brookline is amazing”, maravilhosa, e é mesmo.
Por isso, naquela tarde de maio de 2015, quando terminou a última infusão do estudo, foi com o coração apertado que caminhei de volta para casa. Uma etapa havia se encerrado. Os médicos pediram que continuasse nos Estados Unidos para ficar sob observação, mas, a rigor, se quisesse, poderia voltar ao Brasil. Naquele momento, porém, bastava a ideia de retornar para me deixar angustiado. Achava que poderia tirar mais da minha experiência americana. Além disso, a proximidade com os médicos de Boston me dava mais segurança.
Mesmo assim, vacilava. Devia voltar? O que era o certo a fazer? Tenho uma estratégia, quando me assaltam dúvidas tormentosas: espalho o problema. Converso com pessoas de confiança, peço conselhos, ouço suas opiniões, reúno tudo o que ouvi e, depois, tomo minha própria decisão. Foi o que fiz, naquela tarde de maio. Sentei-me num banco da Pracinha das Rosas, que ficava em frente a minha casa, e passei a acionar o WhatsApp. Falei com diversas pessoas, mas lembro que duas, em especial, foram mais enfáticas: o médico André Fay e o vice-presidente Editorial do Grupo RBS, Marcelo Rech. Ambos disseram o mesmo, quase que com palavras idênticas:
— Se tu quiseres voltar, volta. Vais encontrar apoio em Porto Alegre. Mas o melhor agora é ficar.
Fiquei. Ficamos, eu, a Marcinha e o Bernardo, todos satisfeitos e seguros com a decisão. Cumprimos o resto da década nos Estados Unidos, e foi bom. Houve vicissitudes, é claro. Muita coisa aconteceu, tanta que conto até em livro, no meu Hoje Eu Venci o Câncer. Até que, lenta, mas limpidamente, começamos a compreender que estava na hora de voltar. Nossos afetos e nossas atenções viviam ao Sul do Equador. Descobrimos que somos brasileiros irreversíveis. E lugar de brasileiros é no Brasil.
