Uma vez encontrei o meu amigo Nelson Guahnon, o famoso Cabeça, levando debaixo do braço um cartapácio. O Cabeça não é homem de sair por aí sobraçando cartapácios, então estranhei. Olhei para o volume que ele carregava. Tratava-se de um livro alentado, da espessura de um tijolo de seis furos. A que altas literaturas estaria se entregando o Cabeça?, perguntei para mim mesmo, antes de perguntar a ele. Seria um Ulisses, de Joyce? Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski?
– É um livro sobre jogo – informou-me, por fim, o Cabeça.
Jogo, no caso, de cartas. Que gênio da raça humana teria escrito mil páginas sobre jogo de cartas? Como ele arrumou tanto assunto? Admirável, como diria o professor Ruy Carlos Ostermann.
Muito se escreve e se fala acerca de jogos, essa é a verdade. Eu, aqui, sou um humilde entusiasta do xadrez e gosto de ver vídeos a respeito no YouTube. Meus dois canais preferidos são de Rafaéis. Um é o Rafael Leite, que analisa partidas históricas dos grandes mestres. Um dia contarei de alguns desses personagens, como o Mago de Riga ou Paul Morphy, um jogador feliz com uma história triste. Morphy era imbatível, um fenômeno, o Pelé dos tabuleiros, mas abandonou o xadrez por causa de uma desilusão amorosa…
Mas voltemos aos Rafaéis. O segundo tem dois efes, é gaúcho e se apresenta com o nome do jogo que aprecia: Raffael Chess. Ele grava as próprias partidas e tece comentários muito sinceros, do tipo:
– Vou avançar com este bispo para G5, mas estou louco de medo…
Acontece que, esses tempos, o Raffael andou encantado com uma abertura chamada Ataque Grob. É um lance bastante interessante, porque é arriscado e surpreendente. O Raffael jogou várias partidas desse jeito. E disse que existe um livro sobre o Ataque Grob. Um livro inteiro tratando de uma abertura de xadrez! Não é maravilhoso? Preciso ler isso!
Não tenho medo de livros de mil páginas, já enfrentei muitos até mais taludos, e com denodo. Do que tenho medo é de livro chato. Mas alguns, ainda que sejam obras-primas, necessitam de iniciação. O leitor tem de entender o que ele próprio está fazendo, ao entrar em certos livros. Um exemplo: Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. São sete volumes de uma história que não se justifica pelo seu desfecho, até porque não há um desfecho. Nessa viagem, o que importa não é a chegada, e sim a travessia. Você tem de sorver Em Busca do Tempo Perdido, e não saciar a fome com ele.
Isso me leva a questionar: Em Busca do Tempo Perdido poderia ser escrito no século 21? Será que esse clássico teria alguma chance se Proust vivesse entre nós e não naquele quarto forrado de cortiça na Paris de cem anos atrás?
Duvido.
Nossos contemporâneos são capazes de ler um cartapácio de mil páginas sobre técnicas de pôquer, aberturas de xadrez ou tabela Excel, mas não literatura. Não, não, vivemos em uma época utilitarista. Empenhar-se em qualquer tarefa que não possa ser medida em dólares seria considerado tempo perdido.
Pensar nisso me desanima, mas esbarrei ontem em uma notícia que renovou minha fé no futuro: o filme O Irlandês foi visto por 26 milhões de contas no Netflix só na primeira semana. E O Irlandês tem três horas e meia de duração. Se 26 milhões de pessoas despendem três horas e meia de seu dia para ver um filme, porque não dedicariam uma hora diária a um livro de ficção?
Pode acontecer. Claro que pode. É bom pensar que um Proust poderia viver entre nós.