Há um tanto do Brasil de 2013 neste Chile de 2019. A ignição das revoltas foi a mesma: um pequeno aumento na tarifa do transporte coletivo. Mas isso é irrelevante. O relevante é entender que as economias dos dois países iam bem às vésperas das manifestações, o que tem seu significado.
No Brasil, três meses antes das chamadas Jornadas de Junho, Dilma usufruía dos maiores índices de popularidade jamais alcançados por um presidente na história do país. É verdade que alguns economistas já alertavam de que em breve a população pagaria a conta das irresponsabilidades de gestão do governo, mas ainda havia farta oferta de emprego e algum desenvolvimento.
Já no Chile de hoje, os índices econômicos são quase todos positivos, a ponto de os liberais brasileiros citarem-no como exemplo a ser imitado.
Dois modelos econômicos diferentes, que, na aparência, eram bem-sucedidos, mas que, na essência, não satisfaziam suas populações. Ou seja: governos contentes, povos descontentes.
No Brasil, se aquelas manifestações não chegaram a ser revolucionárias, representaram uma ruptura. No começo, tinham jeito de ser de esquerda. Os black blocs quebravam as vidraças dos bancos e incendiavam carros. No Rio Grande do Sul, governado por Tarso Genro, a polícia indiciou membros do PSTU e do PSOL por suspeita de "formação de milícia privada".
Mas aquela era só uma minúscula erupção que não mostrava o magma que efervescia camadas abaixo. Porque as Jornadas de Junho foram a escola da direita, no Brasil.
Lembro-me de que estava cobrindo aquela gigantesca passeata do Rio de Janeiro, de 300 mil pessoas. Alguns petistas chegaram com suas bandeiras vermelhas. Os manifestantes investiram sobre eles, tiraram-lhes as bandeiras e as queimaram. Em volta, as pessoas gritavam:
— Sem partido! Sem partido!
Uns petistas amigos meus foram às manifestações em Porto Alegre. Brinquei:
— Vocês estão prestigiando o movimento que vai derrubar o governo que vocês prestigiam.
Com as Jornadas de Junho, os conservadores brasileiros aprenderam a se mobilizar. As grandes manifestações que se seguiram foram todas protagonizadas por um setor da sociedade que não estava acostumado a sair às ruas, um setor que se organizava sem sindicatos, sem líderes, sem partido. E o governo, por fim, foi mesmo derrubado.
No Chile de 2019, parece haver idêntica explosão de descontentamento sem que tenha sido identificado um alvo preciso pelos descontentes. É o aumento do transporte coletivo, é a previdência, é a saúde, é "tudo o que está aí".
Em outros lugares do mundo houve agitações semelhantes. Na Espanha, no Haiti, em Hong Kong, no Líbano, no Equador, na Argentina… Não interessa se o país apresenta índices positivos ou negativos, as pessoas estão infelizes. Parafraseando aquele estrategista de Bill Clinton, "não é a economia, estúpido!"
Então, o que é?
É uma mudança profunda, que está acontecendo de dentro para fora e de baixo para cima. Uma mudança que está sendo tocada por um sentimento: o da liberdade. Porque a marca da liberdade é a angústia – a angústia de tomar as próprias decisões, de escolher o próprio destino. Fazer escolhas é duro e causa dor.
Esses povos que ora se rebelam são povos livres, de uma liberdade conquistada não pela política, mas pela mente. A internet, o telefone celular, a TV a cabo, as novas comunicações mostraram para as pessoas do mundo inteiro novas formas de viver, e elas estão irritadas, porque querem algo diferente. Os velhos métodos das nossas velhas lideranças estão mortos. O sistema está moribundo.
A democracia terá de se renovar. "Sem partido!", exigiam os manifestantes de junho. As pessoas sabem o que querem jogar fora. Falta descobrir o que querem pôr no lugar.