Se você vai a um bar da Zona Norte, você é boêmio raiz. Da Plínio para cima, eles se sofisticaram, em vez de cerveja eles bebem clericot, em vez de PF eles comem “tapas”, eles são capazes até de falar “vintage”. Na Zona Norte, não. Na Zona Norte, estão a crueza e a essência da noite nua.
Houve tempo em que o grande bar da Zona Norte era o Pipocas, na Assis Brasil, passando o antigo Cinema Real. Era tão famoso, o Pipocas, que ficava gente bebendo do lado de fora, na calçada, em ruidosa aglomeração.
Naquela época, o nosso amigo Careca tinha um Passat. Ele era o único que tinha carro, na verdade. Então, nós entrávamos todos dentro do Passat e o Fernando se metia no porta-malas, abraçado ao extintor de incêndio. Aí o Careca dirigia rumo ao Pipocas. Quando chegava em frente ao bar, quem estava no banco de trás batia nas paredes do carro. Era o sinal para o Fernando abrir o porta-malas e acionar o extintor. Todos que estavam na calçada ficavam cobertos por aquela espuma branca e o Careca acelerava. Era muito engraçado. Fazíamos tanto isso, que ficamos manjados. Sempre que o Passat se aproximava, alguém gritava:
– Lá vem eles! Lá vem eles!
E todo mundo corria para dentro do bar.
Outro lugar em que íamos bastante era o Bar do Chico, perto da histórica churrascaria Espeto de Ouro, onde ainda vou, de vez em quando, para dar um abraço no também histórico garçom Marquinhos. Histórico mesmo – ele trabalha lá desde que eu pesava 64 quilos e usava guides. Sempre faço o mesmo pedido, na Espeto de Ouro: pão sujo, salada de batata, salsichão e, é claro, picanha ao ponto ou, se estou invocado, sangrando como outrora sangrava meu coração, devido à perfídia de algumas mulheres.
Mas a Espeto de Ouro funciona ao lado do já fechado Hospital Lazzarotto, enquanto o Bar do Chico brilhava e refulgia quase debaixo do viaduto Obirici. Foi nesse bar que meu amigo Ronaldo, gremista e brabo, irmão gêmeo do Renato, colorado e pacífico, transformou a cara de quatro incautos em xis bacon com ovo, de tanto socá-los, que o Ronaldo era exímio brigador de rua, brigava calmo e frio, calculando cada golpe como se estivesse dando uma tacada de sinuca.
Pois agora, dias atrás, eu e meus velhos amigos, alguns do IAPI, outros da Santa Cecília, agora nós fomos ao Amarelinho, que há 70 anos mata sedes e fomes na Brasiliano de Moraes, em frente à Foto Nick. Se você não sabe, devia saber: a Foto Nick registrou o IAPI em seu nascedouro, com imagens do próprio Getúlio Vargas inaugurando os prédios do bairro mais bonito da cidade.
O Amarelinho hoje é do Ênio Blumm, e ele mesmo vai à cozinha e prepara filés suculentos ou imensos sanduíches abertos ou até uma macarronada restauradora.
Nessa noite, sentamo-nos, em volta de uma mesa redonda, eu e mais cinco amigos. Enveredamos noite adentro contando histórias exatamente da boemia raiz. Por ali, pela Brasiliano de Moraes, caminhávamos de madrugada, depois das esbórnias de sábado, no tempo em que se podia caminhar de madrugada pelas ruas da cidade. Ríamos, caçoávamos uns dos outros, estava tudo bem, só havia um problema: o Amarelinho está muito bem decorado, parece um bar do Moinhos de Vento, não dava a sensação de ser, realmente, raiz. Continuamos com essa impressão, até que o Cabeça foi ao banheiro. Voltou de lá sorrindo e anunciando:
O cartaz do banheiro não pede nem aconselha, manda: “Não suba no vaso!”.
– Esse é mesmo um bar do IAPI!
Ficamos curiosos. O que podia ser? Descobrimos: é que os bares do mundo, isso é notório e sabido, costumam colocar avisos nas paredes dos banheiros. Nos botecos de praia é comum ler-se um pedido que é quase uma advertência: “Não jogue papel no vaso”. Outros lembram normas de boa convivência e educação: “Não urine no chão”. E, nos Estados Unidos, eles põem um anúncio tranquilizador: “Os empregados são obrigados a lavar as mãos”. Mas, no bar do IAPI, não é nada disso. O cartaz do banheiro não pede nem aconselha, manda:
“Não suba no vaso!”.
Sorrimos, contentes, ao ler essa ordem. Sabíamos onde estávamos e estávamos onde queríamos: na Zona Norte. Onde os bares são da boemia raiz.