Já vivi muitas vidas nesta minha vida. Já fui outros. Às vezes, algo, uma foto antiga ou uma pessoa que vem do passado, me faz recordar alguém que fui e me surpreendo: “Eu não lembrava que tinha sido assim…”.
Essas pequenas vidas dentro da vida podem terminar por diversas razões: uma mudança de emprego ou de cidade, o fim de um casamento ou de um namoro, o ingresso em uma nova turma de amigos.
O desaparecimento de um único amigo pode mudar tudo, também.
Neste 2019, perdi um grande amigo que tinha, o Professor Juninho. Quando ele morreu, foi como se todo um tempo tivesse acabado e alguém que fui ficou lá atrás, bebericando Millerzinha gelada no gargalo, encostado à parede do Doctor Jeckyll, enquanto B.B. King tocava sem parar.
E agora, nesta semana, morreu o Ximba. Já contei algumas histórias dele, são impagáveis. O Ximba foi, durante décadas, diagramador da Zero Hora. Era o que velhos cronistas chamariam de folgazão. Estava sempre de bom humor, sempre rindo e caçoando de alguma vítima. O Ximba era sambista, um dos maiores pandeiristas de Porto Alegre. Apreciava, portanto, a vida noturna.
As noitadas de samba e cerveja são uma delícia, mas, é claro, têm um preço.
As noitadas de samba e cerveja são uma delícia, mas, é claro, têm um preço. O primeiro é que, no dia seguinte, o boêmio sente sono. Eu mesmo, confesso, certa vez aconteceu comigo uma coisa horrível: a noite anterior havia sido agitada, me envolvi com uma moça dada a negaças e burlas e ela me manteve alerta até de manhã. Tinha dormido quase nada e, à tarde, logo após o almoço, precisava entrevistar uma autoridade. Era um homem de meia-idade, dono de voz grave e baixa. Sentei-me em uma confortável poltrona no escritório dele e ele começou a falar. Ele falava e falava em tom monocórdico, falava sem parar, de uma forma tão calma, tão pacífica, que aquilo foi me dando um sono a princípio envolvente, depois poderoso e finalmente invencível.
Então, dormi. Vergonhosamente, dormi. Na frente do entrevistado. Cheguei a sonhar um pouco, por Deus. Mas acordei assustado e, espantosamente, ele continuava falando. Não sei se percebeu que adormeci, não falou nada. Finalizei a entrevista, sem saber se tinha perdido algo importante, e fui embora.
O Ximba, noctívago que era, também sentia sono. Mas havia desenvolvido uma técnica especial para dar uma cochilada durante o trabalho: ele puxava diante dos olhos uma boina que usava sempre, apoiava uma ponta do lápis no diagrama e o queixo na outra ponta, e dormitava com a tranquilidade dos justos.
Você sabe aquela música americana de Natal It’s the most Wonderful Time of the Year, Esta é a Época mais Maravilhosa do Ano? Para o Ximba, não era o Natal: era o Carnaval. Toda sexta-feira, véspera da folia, ele desaparecia e só reaparecia na Quarta-Feira de Cinzas. Mas um dia a mulher dele lhe deu um ultimato:
– Neste ano, não! Neste ano, tu não vais desaparecer na sexta e reaparecer na Quarta-Feira de Cinzas. Tu vais passar o Carnaval com a família!
O Ximba suspirou e disse que sim, tudo bem. E, demonstrando boa vontade, chegou em casa com ingressos para o Baile Municipal, da Sogipa. Na sexta, dia do baile, ele alugou um smoking, pegou a mulher e as filhas e foram todos à festa. Sentaram-se em volta a uma mesa de pista, coisa fina. O Ximba, todo cortesia, perguntou:
– O que vocês querem beber, meninas? Guaraná? Guaraná? Guaraná para todas? OK. Vou ali na copa buscar as bebidas.
Foi.
E só reapareceu na Quarta-Feira de Cinzas.
Grande Ximba, um homem fiel às suas convicções. Era o símbolo de uma vida fagueira e leve, uma vida com algumas desculpas, mas certamente sem culpas. Que não existe mais.