Na parede do consultório do meu dentista, está pendurado um quadro meio sinistro. O meu dentista, o Ramão, é craque, é camisa 10 da odontologia, mas pregou aquele quadro estranho bem na frente da cadeira em que os pacientes são instalados. Então, há alguns anos, lá estava eu, sentado, esperando pelo Ramão e olhando para o quadro, quando a secretária dele, a Letícia, entrou. Aí eu disse:
– Letícia, sabe que acho esse quadro meio sinistro?
Ela levou a mão ao peito:
– Ai, meu Deus! Eu também acho!
E contou que sente muito medo de espíritos e outras coisas invisíveis. Quando vai ver um filme de terror, passa três ou quatro noites sem dormir, com medo de que o próprio capeta, de guampa e rabo pontudo, pule de uma sombra do quarto direto para sua cama. Mesmo assim, ela às vezes cede à tentação e assiste a um desses filmes horríveis. Foi o que havia acontecido dias antes da nossa conversa. A Letícia tinha ido ver A Freira e saíra do cinema muito, muito impressionada.
Os piores momentos para Letícia, quando ela está com receio das forças sobrenaturais, é quando fica sozinha no consultório.
– Eu geralmente chego antes do doutor Ramão – relatou-me ela, de olhos arregalados. – Aí, fico andando de uma sala para outra deste consultório silencioso, arrumando tudo, torcendo pra que ele chegue logo. Tento nem olhar pra esse quadro – apontou para a parede. – Ele me dá arrepios…
Pois deu-se que, exatamente um dia depois de assistir a A Freira, a Letícia chegou ao consultório mais assustada do que nunca. Aquele filme mexera mesmo com ela. O Ramão não aparecia e ela tinha um mau pressentimento. Parecia que algo ruim ia acontecer. As cenas do filme ficavam se repetindo na cabeça dela. Então, ela ouviu o barulho da porta da frente se abrindo. Era um paciente que entrava. A Letícia foi conferir quem era. Caminhou até a parte de trás do balcão. E, do outro lado, viu nada mais, nada menos do que… UMA FREIRA!
Não era um espírito do Mal, claro, era uma paciente do doutor Ramão, que provavelmente é uma pessoa do Bem. Mas foi por muito pouco que a Letícia não se jogou pela basculante, terceiro andar abaixo. Que teste de resistência para um coração puro, como é o da Letícia.
•••
Esse medo da Letícia é um medo exclusivamente nosso: um medo humano. Os bichos também sentem medo, mas não desse gênero. Os bichos temem o que está acontecendo, não o que pode acontecer. Eles não se inquietam com o futuro. O silêncio de um consultório ou o escuro de um quarto, para os bichos, são bons para dormir e jamais o prenúncio inexplicável de que algo ruim sucederá.
•••
Muitas vezes, as coisas invisíveis de que temos medo são invisíveis porque não existem
Dias atrás, falamos disso no Timeline, da Gaúcha. Entrevistamos um colega jornalista, o Lourival Sant’Anna, que é correspondente de guerra e escreveu um livro intitulado Minha Guerra Contra o Medo.
Em seu livro, Lourival conta que desenvolveu uma técnica para controlar o medo. Isso aconteceu de forma empírica, quando ele percebeu que o maior medo que sentia não se dava em meio aos bombardeios ou durante o perigo real de um combate: dava-se à noite, no momento em que ele estava seguro, na cama, ou dentro do avião, antes de chegar ao local da cobertura, a salvo de balas ou bombas.
Lourival entendeu, então, que o medo que faz mal, o medo doentio, não corresponde à realidade, corresponde ao que o ser humano imagina no que possa se transformar a realidade.
Assim, Lourival criou formas de se concentrar apenas no presente. Ele se dedica a tarefas práticas que ocupam sua mente e afastam o medo. No bombardeio, ele conta o número de explosões e calcula o tempo entre elas. No avião, ele lê sobre o país que vai visitar e os personagens do conflito. Essas coisas palpáveis do dia a dia.
É bom o livro de Lourival. Vale a leitura. Vou indicá-lo para a Letícia. Talvez ela compreenda que, muitas vezes, as coisas invisíveis de que temos medo são invisíveis porque não existem.