As pessoas estão adorando usar aquele aplicativo que as envelhece nas fotos. Riem de si mesmas, publicam a imagem modificada nas redes, a maior diversão. Fiquei pensando se, por fim, esse aplicativo não está prestando um grande serviço psicológico a quem o utiliza: está acostumando as pessoas a um tempo que será inevitável, se tudo der certo. Repito: se tudo der certo.
A propósito disso, lembrei-me de Foguinho. Alguém deveria escrever um livro sobre o Foguinho. Era um desses personagens românticos, que não existem mais. O velho Oswaldo Rolla. Ou “seu Rolla”, como o chamavam depois que virou técnico.
Seu Rolla foi o inventor do futebol gaúcho. Esse futebol de denodo, de imposição física, isso foi ele quem primeiro valorizou no Rio Grande.
E o fez desde que era só Foguinho.
Vou contar a história do maior dia de sua vida. Já contei antes, mas repito, porque é maravilhosa, e não apenas para quem gosta de futebol.
Foi 22 de setembro de 1935. Porto Alegre vivia uma espécie de euforia progressista. Nos anos anteriores, sob a prefeitura de Alberto Bins, avenidas tinham sido rasgadas, ruas tinham sido pavimentadas, a cidade explodia em progresso. Para o centenário da Revolução Farroupilha, o Estado preparou uma exposição que seria designada como “a maior da América”. Países do mundo inteiro levantaram pavilhões no remodelado Parque Farroupilha, antes chamado de Redenção.
Naquele tempo, o campeonato citadino era a competição mais importante do mundo para gremistas e colorados. O de 1935 mais importante ainda, porque foi chamado de “O Campeonato Farroupilha”. Grêmio e Inter, claro, chegaram à final, com vantagem para o Inter, que, com o empate, seria campeão.
Naquele tempo, o campeonato citadino era a competição mais importante do mundo para gremistas e colorados. O de 1935 mais importante ainda, porque foi chamado de “O Campeonato Farroupilha”
É aí que começa a nossa história. Foguinho era o único jogador que realmente cuidava do preparo físico na época. Trabalhava durante o dia como alfaiate, mas, à noite, queria treinar. Para atendê-lo, o Grêmio instalou, na Baixada, o primeiro sistema de iluminação do Estado, em 1931. Foguinho, assim, treinava todos os dias, mas não aceitava receber salários. Era um amador, no melhor sentido do termo.
Para melhorar ainda mais a condição física, ele praticava outros esportes, como remo e polo aquático. Na manhã do Gre-Nal Farroupilha, ele participou de uma competição de remo no Guaíba, e venceu. À tarde, tomou um bonde e foi para a Baixada.
O Estádio estava lotado, mezzo azul, mezzo vermelho. No lado azul, um drama: os médicos pediam que o mítico goleiro Lara, consumido pela tuberculose, não jogasse. Mas Lara era um abnegado: disse que jogaria de qualquer jeito. Jogou, e foi decisivo para que o placar ficasse em 0 a 0 no primeiro tempo, que, então, durava 40 minutos. No intervalo, porém, informou que não suportava mais as dores da doença e foi substituído. Lara foi levado para a Beneficência Portuguesa, onde morreria um mês e meio depois, causando a maior comoção da história de Porto Alegre.
No segundo tempo, o Inter jogava melhor, o Grêmio resistia. Faltando três minutos para o fim, o árbitro apitou uma falta na intermediária colorada. Foguinho aproximou-se do centromédio Mascarenhas e pediu:
– Levanta na área, que o Risada vai tirar e vou pegar o rebote.
Foi exatamente o que aconteceu. Risada afastou de cabeça e Foguinho apanhou a bola na meia-lua, com o peito do pé esquerdo, sem deixá-la bater na grama: gol do Grêmio. Na saída de bola, os colorados desnorteados foram desarmados pelo próprio Foguinho, que avançou em velocidade até a área, esperou a saída do goleiro e rolou para Lacy fazer 2 a 0. Foi um jogo tão espetacular, que os gremistas decidiram comemorá-lo por cem anos com um jantar, o Jantar Farroupilha, que ocorrerá até 2035.
Meu avô era um admirador de Foguinho, vivia falando dele e contando suas histórias, essa entre elas. Quando me tornei jornalista, entrevistei o Foguinho muitas vezes e posso dizer que me tornei seu amigo. Um dia, ele me contou:
Olhar para trás e ver um passado bonito é bom, mas olhar para frente sem ter a ilusão de repeti-lo é muito melhor.
– Às vezes, sonho com o Gre-Nal Farroupilha. Aí, acordo de madrugada e fico pensando naquele tempo, quando eu era tão feliz…
Noutro dia, quando me recebeu em seu apartamento, na Senhor do Passos, perguntei como estava e a resposta veio em meio a um suspiro:
– Estava bem quando tinha a sua idade…
A nostalgia que Foguinho sentia de seu próprio apogeu físico me tocou. Lamentei que um homem tão inteligente não tivesse compreendido que a velhice pode ser até divertida, se houver o bom humor de quem se contempla velho por aplicativo. E que olhar para trás e ver um passado bonito é bom, mas olhar para frente sem ter a ilusão de repeti-lo é muito melhor.