Do que eu gosto mesmo é de histórias de detetive. Sei que o gênero não tem muito prestígio intelectual, mas o que é que vou fazer se estou mais para o IAPI do que para a Ilha de Capri?
Ainda hoje, às vezes, sinto necessidade, e essa é a palavra certa, “necessidade”, pois às vezes sinto necessidade de ver um filme ou de ler um livro do gênero policial.
Um dos meus personagens preferidos, óbvio, é o detetive particular Philip Marlowe. Quando guri, eu queria ser Marlowe. Porque ele era durão, mas sensível; cínico, mas honesto; solitário, mas cobiçado pelas mulheres.
Ah, as mulheres com que se envolvia Marlowe! Sedutoras. Insinuantes. Fatais.
Certa feita, em meio a uma investigação, ele comentou:
– Podemos ter ressaca de outras coisas, além de álcool. Eu tive uma de mulheres, uma vez.
O curioso é que o criador de Marlowe, o grande Raymond Chandler, não chegava a possuir uma vasta experiência com o sexo oposto. Alguns de seus biógrafos suspeitam que ele só foi perder a virgindade aos 31 anos de idade, com uma mulher 18 anos mais velha, por quem se apaixonou e com quem iria se casar.
Mesmo assim, Marlowe abordava o assunto com desenvoltura. Numa de suas histórias, ao descrever uma personagem, disse que ela era “um pouco mais do que bonita e um pouco menos do que bela”.
Não é perfeito?
De outra ele escreveu o seguinte: “A dez metros, ela parecia cheia de classe. A três metros, parecia algo concebido para ser visto a dez metros”.
Uma daquelas fêmeas provocantes que se atravessaram na vida do incorruptível detetive Marlowe um dia fez assim:
“Mordeu os lábios, voltou um pouco a cabeça e olhou-me de soslaio. Depois, baixou as pálpebras, até quase tocar com os cílios nas faces, e levantou-as de novo, lentamente, como uma cortina de teatro. O truque não me era estranho e destinava-se a fazer com que me atirasse no chão e rebolasse com as quatro patas no ar”.
Ah, como eu queria ser Philip Marlowe…
Esses livros de Chandler, bem como os de Hammett, Goodis, Simenon e da velha senhora Christie, esses e tantos outros eu consumia na Biblioteca Pública Romano Reif, que antes ficava incrustada na frente do salão de festas da Coorigha, na Plínio Brasil Milano, e que agora está plantada em frente ao Estádio do Alim Pedro, onde eu dava meus lançamentos de 60 metros, estilo Roberto Rivellino, o Patada Atômica.
Chegou a época em que havia lido todos os livros da biblioteca. Ou, pelo menos, todos os que me interessavam. Aquele lugar faz parte do que hoje sou. Pelo menos da parte boa.
Bem.
Há cerca de ano e meio, moradores do IAPI me contaram que a biblioteca estava em dificuldades. Havia vazamentos no teto e infiltrações nas paredes. Quando chovia, as bibliotecárias tinham de cobrir livros e computadores com lona. Escrevi a respeito em Zero Hora, falei na rádio, pedi que o poder público ajudasse.
Deu resultado?
Zero!
A prefeitura alegava que o terreno em que está a biblioteca é do Estado, o Estado alegava que a biblioteca é municipal. Em resumo, não deram a menor importância para o que estava acontecendo.
Felizmente, Gilberto Petry, presidente do Sinmetal, o Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, leu a coluna e decidiu ajudar, até porque, segundo me disse ele, “o IAPI é o melhor empreendimento popular já feito no Brasil”. O Petry tem toda a razão – o IAPI é um pedaço de Liverpool em Porto Alegre.
Agora, depois de resolver alguma burocracia, o Sinmetal começou a fazer obras na biblioteca. Ou seja: é a comunidade resolvendo seus problemas – porque das autoridades não se pode esperar muita coisa mesmo.
Fiquei muito feliz. E, na certa, mais felizes estão os guris do IAPI. Quem sabe alguns deles não estão neste exato instante lendo o velho e bom Marlowe e aprendendo com ele? Posso vê-los atravessar a rua, gingando em direção ao campo do Alim Pedro, e pronunciando frases como:
“Existem dois tipos de verdade: a que ilumina o caminho e a que aquece o coração”.